O dia começa timidamente
a clarear com uns raios de sol que rasgam as nuvens provocando a orvalhada
matinal que dança com preguiça no ar, disseminando um sabor húmido e frio. O
som metálico solfejado pela máquina que se desloca para a linha, onde jazerá à
espera daqueles que se preparam para partir. O relógio redondo, de fundo branco
e ponteiros negros e esguios, marca as cinco da manhã. Por enquanto ainda não há
viajantes, apenas os preparativos da máquina que se alinha, para que, à hora
certa, o seu sinal sonoro desperte a partida.
O sinal sonoro
ainda não arrebatou esta inércia matinal, mas já não estamos sozinhos, nunca
estivemos sozinhos embora o silêncio impere entre nós faz uns dias. Ainda não
consegui digerir que vou ficar sozinha durante uns tempos, nesta terra onde o
diabo perdeu as botas, quando tu me podias levar contigo. “Porque vais? Porque não
me levas contigo? Podia fazer umas compras, ou visitar a minha prima?”,
pergunto-lhe eu numa réstia de esperança para que compre mais um bilhete. Não
trouxe bagagem, mas não me importava de lavar todos os dias esta mesma roupa, só
para estar perto de ti, mas tu não entendes, não entendes que vou ficar em casa
fechada, porque não é de bom tom uma senhora casada sair à rua sozinha. “Não me
respondes? Pelo menos não partas a ignorar as minhas perguntas!”, desafio a
responder o que já me respondeu e eu não quis entender. O seu olhar concentrado
no horizonte da linha, apenas desviado para o seu relógio de bolso de cinco em
cinco minutos desconcerta-me, mas não posso fazer uma cena no meio da estação. “Ficarás
bem, aproveita para ler e reestabelecer os laços com as senhoras da sociedade.”,
disse-me num tom pausado e assertivo. “Por muito que te responda, não queres
entender que não vou porque quero, vou porque tenho de ir, ponto!”, e com o “ponto”
quis dar por encerrado o assunto que eu ainda queria reabrir, mas não o podia,
em abono da verdade, eu sabia que era assim, que ia em benefício dos dois e
pelo nosso futuro. O sinal sonoro fez-se soar e salvou o embaraço daquele silêncio.
“Desculpa, viaja em segurança e que tudo corra bem. Volta depressa...”,
disse-lhe enquanto limpava uma lágrima que teimava em balançar na bolsa dos
meus olhos. Esperei que o comboio arrancasse, deixando para trás uma nuvem de pó
e cheiro a carvão queimado, mas sentindo os seus lábios na minha cara, e imagem
do nosso olhar complementado com um sorriso só nosso.
O relógio marca as
dez da noite e o altifalante avisa-nos que estão a chegar dois comboios, um
intercidades e um alfa pendular. A azáfama começa a emergir com os comboios a
parar e as pessoas a saírem, quase todas com o telemóvel na mão, com as malas
de computadores a tiracolo, e quase todas sem ninguém à sua espera. No final da
fila das pessoas que se atropelam para chegar mais rápido aos táxis, ou a nada,
vem um senhor, de fato escuro, com uma mala de couro, que calmamente se dirige à
porta da estação e beija na bochecha a cara de uma senhora e lhe sorri.
Sem comentários:
Enviar um comentário