Por vezes tenho uma sensação estranha que os dias passam sem lhes darmos o verdadeiro valor, passando por eles sem sequer os sentirmos. Levantamo-nos, vamos trabalhar, voltamos para casa e só queremos deixar de pensar, nem que seja por um minuto... só um minuto, para recuperar as forças de um dia que passou sem que déssemos por ele, esquecendo-nos de abraçar a vida que nos foge pelos dedos.
Felizmente nem todos os dias são assim, há aqueles em que vivemos pequenas coisas que nos fazem perceber que estamos mais ricos, pois temos mais um dia na nossa contabilidade. Hoje, foi um desses dias, senti-o a entrar no património dos meus dias, dos dias que são só meus, dos dias que dedico à minha vida, que cada vez mais controlo menos. Hoje, eu vi-te e senti-te outra vez.
De mão dada a um rapazote de cabelo castanho-escuro com ar de traquina, passeavas pelo centro comercial deixando no ar o aroma doce e frutado do teu perfume. Delicadamente explicavas algo ao reguila, que queria entrar na loja dos brinquedos, com a meiguice que te era particular, segredando-lhe palavras cuidadas que o acalmava. Depois dessa vitória, procuravas com o olhar uma zona dos fumadores – nunca te vi a procurar uma zona de fumadores, não existia na altura esta questão. Imaginei que quisesses dar uma passa bem forte num SG Gigante e depois dedicasses o tempo em que o cigarro ardesse, sozinho e lentamente, a arranjar as fraldas da camisa do reguila que teimavam em sair das calças, penteavas-lhe o cabelo e certificavas-te de que estava perfeito, e só aí seguirias caminho sem olhar novamente para a beata que, entretanto, se apagara.
Ao ver-te, abriu-se a janela da saudade, abriu-se novamente a ferida que tarda em sarar, queria ter ido ter contigo, mas preferi observar-te de longe onde estávamos os dois de mão dada a passear algures, mas, quando dei conta, senti-te outra vez, e mais uma vez, de um momento para o outro, sem que estivesse preparado, senti-te a fugires-me do olhar, do pensamento, permanecendo a dor de quem ama.
Fiquei sentado no banco a lembrar-me que faz tempo demais que partiste sem aviso. A vida segue o seu ritmo, como um comboio em andamento, e nós temos que o apanhar para não ficarmos perdidos no espaço vazio da saudade. A tua ausência deixa em aberto um espaço de felicidade que me estava destinada – não fosse ela resultado de momentos, felizes ou infelizes, que vivemos ao longo da vida.
Insensatamente, liguei o telemóvel e olhei uma fotografia tua, estavas diferente, os anos haviam passado por ti, tentavas esboçar um sorriso, mas quem te conhecesse, percebia facilmente “que chegavas a fingir que é dor, a dor que deveras sentias”.
Não consegui processar a imagem daquele instante durante largos minutos perdi a noção do tempo, até que ao ver-me novamente de mão dada contigo a minha face forçou um sorriso involuntário, tu estavas bem e feliz, como outrora também o foste, e eu vivi mais um momento.
Voltei ao trabalho, depois para casa e vivi o resto de um dia que contou. Os dias só contam quando marcam um traço de felicidade no caderno das contas, todos os outros servem de passagem de uma vida que não controlamos.
Hoje, vivi de forma completa, porque tornei a amar-te, mesmo que tenha doído.
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