UMA FOTO, UMA LEITURA
A Culpa
Podemos continuar a
falar como se nada tivesse acontecido, neste restaurante onde já fomos um só. Continuámos
sem querer mencionar que aquilo que nos trazia aqui já não existe e que nós já
não estamos aqui, ou melhor, eu estou e tu estás, mas nós como já o fomos um
dia já não estamos aqui porque este vinho maduro tinto de castas do Douro já
não perdura na minha boca como outrora, nem as velas que antes alumiavam a
minha cara conseguem fazer desaparecer esta sombra da culpa.
- Podias ao menos
fingir que estás a ouvir o que te estou a dizer!
A verdade é que
podia, a verdade é que queria escutar o que estás a dizer, mas tenho medo,
tenho medo que perguntes o que é que eu estive a fazer até tarde no escritório,
e não vá eu ter que te olhar olhos nos olhos, sem chorar, e dizer-te que tudo
aquilo que construímos durante vinte anos foi destruído, tudo porque nessa
maldita noite não fui capaz de lhe dizer “não”, “para”, “basta”. Acredita que
se eu pudesse voltar atrás tê-lo-ia dito de forma veemente para que não
restassem dúvidas da minha posição dúbia, ou talvez não fosse capaz, mas a
verdade é que querer-lho-ia ter dito…mas não disse.
- Os senhores aceitam um
pouco mais de vinho?
Arriscava dizer-te
que parece que estamos a beber um pouco demais, mas não, já não o sei dizer, já
não mereço dizê-lo, sem ser ofensivo, porque não beber um pouco demais, porque
é que só me estou a preocupar agora que já é tarde demais. Como isto, muitas
outras coisas poderiam ser ditas neste local onde tudo já não é o que era,
porque há dias que mudam uma vida, assim como há vidas que mudam o resto dos
nossos dias. Por outro lado, é melhor dizer que aceitamos mais vinho, que
embora já não tenha o sabor de sempre, podemos sempre contar com o efeito
inebriante do álcool, é melhor dizer que queremos que encha os copos bem cheios
e que, sempre que os vir a esvaziar, garanta que não chegam ao fim, porque o
melhor é bebermos para esquecer, ainda que tu não saibas o quê, vais com
certeza querer esquecer aquilo que não mereces saber e que te fizeram. Vamos
beber, beber para esquecer que, um dia, numa noite, num momento, num instante,
eu fiz o que não poderia ter feito, para esquecer que fui fraco quando deveria
ter sido forte, para fingir que fui homem quando na verdade fui uma besta.
Vamos pedir a conta,
porque já estou farto do sabor a álcool etílico deste vinho, porque já estou
farto destas velas me cobrem a cara de sombra, vamos embora antes que tudo se
desmorone na mentira que estamos a viver e fiquemos aqui dentro, presos na
verdade, presos na dor, presos no arrependimento. Vamos fugir para bem longe,
tão longe quanto possível, onde a distância possa possibilitar-nos voltar atrás
e fazer tudo diferente, fazer tudo bem e, aí, bebermos este vinho – aromático, tão
encorpado que deixa na boca uma sensação harmoniosa e macia – e deixarmo-nos
levar por uma noite de romance.
Ainda estamos nesta
pocilga, quero ir embora, quero fugir, o empregado não olha, não percebe nos
meus olhos que sofro, em desespero recorro ao prático abdicando do cortês para
chamar pelo empregado…simulo uma assinatura em plena atmosfera. Podia esperar e
esperar para dizer “desculpe”, “faz favor, a conta!”, mas o tempo urge, temos
que fugir desta comida que já não alimenta um corpo com uma alma tão carregada
de culpa, culpa por ter passado a besta e, ainda assim, tu achares que eu sou
bestial, mesmo ao fim de vinte anos, mesmo depois de conheceres todos os meus defeitos,
ou melhor quase todos, e ainda assim vês em mim a integridade camuflada por
esses vernizes modernos que secam em dois minutos e duram e duram e duram,
sempre a brilhar, sempre esplendorosos, a esconder uma unha sem cor, sem brilho,
sem vida, sem honra.
- Ó querido, tu hoje
estás com uma cara de enterro!
Não
me chames querido, não te preocupes comigo, não sejas boa comigo quando eu fui
um sem vergonha contigo, e em vez de dizer “para” fechei os olhos e deixei que
a minha cobardia me vencesse nesta derrota que significa a morte do “nós”.
O enterro ainda está
para vir e eu vou sofrer ao ver-te seres apanhada nesta dor ardente, nesta
ferida de um fogo que não se vê.
A culpa é um sentimento que não nos dá paz,sossego..consome-nos lentamente até já não conseguirmos viver sem a dizer.Um pequeno texto,bem redigido e profundo.
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