Com este conto obtive o 2º Lugar no II Concurso
Literário do Serviço de Humanização do Centro Hospitalar de São João com o
conto "Um Pouco de Si em Mim".
Os textos premiados deste Concurso serão
apresentados em exposição no Atrium Hospitalidade do Centro Hospitalar de São
João, entre os dias 22 de Junho e 31 de Agosto de 2012, a quem cedi
gratuitamente os direitos de utilização, exibição e reprodução ao Serviço
de Humanização do Centro Hospitalar de São João para fins promocionais e/ou
culturais.
Um Pouco de Si em Mim
Envolto dos lençóis dormia. Lá fora a
chuva caía de forma precisa e homogénea, primeiro numa ameaça fugaz, depois com
pujança replicando nas telhas gastas do telhado. Nessa manhã daquele inverno
rigoroso, o dia começava paulatinamente a irromper sobre a noite, abrindo-se de
forma lenta e penosa, com a claridade a conseguir desabrochar por entre as
nuvens cinzentas que cobriam o céu. Timidamente, por entre as frinchas de uma
persiana estragada, a luz da estrela central do sistema solar imanava uma
luminância branda e pouco vigorante, passeando com dificuldade pelo quarto,
atingindo-lhe a cara, despertando-o do sono profundo de mais uma noite de
estudo.
O despertador tocou às sete em ponto,
levantou-se e arranjou-se no quarto de banho do corredor que partilhava com o
avô. Eram quase oito horas quando o foi acordar. Chamou-o com o cuidado e com a
delicadeza de quem toca numa flor, neste caso um cravo vermelho e aveludado.
- Avô, são horas de se ir arranjar – disse-lhe, quase sussurrando.
- Arranjar-me? Que horas são?
- São oito horas. Vá-se levantando e pode ir já para o quarto de banho que eu já estou pronto. Vou preparar o pequeno-almoço, está bem?
- Está bem – e virou-se com preguiça para o outro lado à procura do sono interrompido.
- Vá, não se vire. Vai chegar atrasado.
- Nesta idade eu já não chego atrasado a lado nenhum.
- Vou fingir que não ouvi, porque deve ser do sono. Podemos sempre chegar atrasados.
O avô levantou-se a custo, ficou uns
minutos sentado na beira da cama a olhar para o espelho. Tocou na sua face,
sentiu a pele fina e macia, percorreu as rugas – que ganhou com cada
experiência de vida – com suavidade, numa espécie de carícia, até que num
impulso ganhou coragem e foi para o quarto de banho, enquanto o neto preparava
o pequeno-almoço. Esta semana estavam sozinhos, os pais do jovem tinham ido
passar uns dias de férias para o campo repousar do ritmo frenético que levavam
no dia a dia. Faziam-no duas a três vezes por ano, uma vez que não tinham
possibilidades de ir de férias na época alta. O neto e o avô estavam já
habituados a essa rotina, em boa verdade era o próprio avô que muitas vezes os
incentivava a irem para a aldeia. O pequeno-almoço tinha que ser reforçado para
que o avô aguentasse a manhã na Universidade Sénior. Depois da morte da avó, a
família tentou de tudo para que o avô se mantivesse ocupado e ativo. Nesse
momento, as suas grandes aventuras eram a Universidade Sénior pela manhã e, à
tarde, a ginástica que a câmara municipal proporcionava. Desde que começou a
frequentar estas duas atividades, notou-se um novo estado de espírito
concomitante com uma nova frescura física. O homem cabisbaixo dera lugar a uma
nova etapa de vida, a uma nova experiência, a uma nova amizade com o seu neto.
O pequeno-almoço reforçado não era mais
do que um pequeno-almoço normal, mas o neto fazia questão de o preparar
cuidadosamente e com a variedade que lhe era permitida, primeiro, para garantir
que o avô o tomava e, segundo, que não abusaria das gorduras e do açúcar. Após
a refeição, ambos tinham como destino a universidade – o neto tinha entrado na
Faculdade de Economia da Universidade do Porto, estava no segundo ano e
conseguia ter boas notas. No seu Volkswagen Polo de 1997, comprado com o
dinheiro que ganhou a trabalhar nas férias, seguiam viagem numa discussão sobre
que estação de rádio deviam ouvir, o avô queria notícias e o neto música. O avô
argumentava que saber as novidades do dia ajudava na instrução das pessoas. O
neto perdia na ausência de argumentos válidos e cedia com deferência. As duas
universidades não eram muito longe, não obstante havia por parte do neto um
esforço suplementar na conciliação dos horários, pois também tinha aulas de
tarde e ainda que ir buscar o avô.
No caminho para casa havia sempre uma
conversa animada, mais parecida com um monólogo, pois o avô debitava com grande
entusiasmo o que havia aprendido e o neto deixava que a conversa tivesse só um
sentido, por um lado, porque sabia que desta forma o avô exercitava a mente,
por outro, gostava de olhar para ele e vê-lo novamente feliz. No entanto,
naquele dia, o avô estava calado, qualquer coisa lhe havia retirado a habitual
alegria, o olhar triste acentuava as linhas da vida marcadas na sua pele. O
neto deixou passar uns minutos até que decidiu interpelá-lo:
- Então avô, o
gato comeu-lhe a língua?
- Não, ela está
aqui, mas não quer falar.
- Vá lá! Diga-me o
que se passou, pode ser que consiga ajudar.
- Coisas de
velhos.
- Velhos são os
trapos. Diga-me, por favor, o que aconteceu. Não gosto de o ver assim.
- Sabes, nem todos
têm a minha sorte. Hoje soube que um amigo, que vive sozinho e não tem ninguém
que o ajude, anda a faltar às aulas porque os filhos lhe dizem que a
Universidade Sénior é para entreter velhos! Quanto à ginástica, dizem para
deixar essas coisas para os netos e que fique em casa. Nem se dignam a
visitá-lo!
- Avô, não se
trata de sorte ou azar, trata-se de bom senso. Lembro-me que a avó uma vez me
disse uma frase – numa altura em que atirei uma pedra pequena para assustar um
gato – que retenho para sempre: "não faças aos outros aquilo que não
gostavas que te fizessem a ti". Para além disso, há uma responsabilidade
social entre todos, parece-me demasiado grotesco que se abandone uma pessoa
quando ela mais precisa. Não é necessário sermos sequer família! Hoje vamos a
casa do seu amigo, para que vá consigo à ginástica. Deixo-vos no parque junto
ao pavilhão que é abrigado e, assim, colocam a conversa em dia.
O neto falou num impulso de revolta
interior, tentando a todo o custo absorvê-la para que o avô não se enervasse.
No regresso a casa, onde o almoço estava já adiantado de véspera, o neto
começou a contar os minutos para tudo o que teria de fazer antes da primeira
aula da tarde. Teria de ir buscar o amigo do avô e levá-los ao parque. Chegados
a casa, o neto apressou-se a colocar a roupa do avô para a ginástica e foi
terminar o almoço. Hoje tinha preparação física, por isso, preparou uma massa
de carne, sempre ouvira dizer que era o que os atletas comiam antes das provas.
A refeição ficou pronta enquanto o avô trocou de roupa. Comeram primeiro uma
sopa e depois o prato principal. No final, o neto enganava o avô e dizia que o
café tinha acabado e que só tinha cevada. O seu coração já não era novo e, por
isso, era preciso cautela – o neto geria a situação de modo natural e
verosímil.
A casa do amigo ficava perto do
pavilhão, o neto podia deixá-lo e ainda vinha a tempo de vir buscá-lo depois da
ginástica. O carro parou em frente da casa do amigo, era germinada, pequena e
muito mal tratada por fora. O neto perguntou duas vezes ao avô se era mesmo
aquela morada que mais parecia uma casa abandonada. Confirmou que sim, que
nunca havia entrado, mas que já o tinha vindo trazer quando o amigo andava mais
doente. Bateram à porta. Esperaram uns minutos até que o amigo a viesse abrir.
A porta de madeira está degradada e, a cada uso do batente, mais um pedaço de
tinta caía como um floco de neve. O amigo continuava sem responder, o avô
repetia a cada cinco segundos que o amigo ouvia mal, o neto começou a ficar
preocupado.
- Há quanto tempo
não o vê? Tem a certeza que é neste local? Parece abandonada!
- É aqui, tenho a
certeza. A verdade é que não o vejo há mais de uma semana.
O neto, cada vez mais preocupado, batia
na porta ainda com mais força, mais tinta a cair no chão, chegou mesmo a tentar
espreitar pelas janelas, mas as persianas há muito que não eram abertas e a
sujidade tornava impossível a tarefa. O cérebro do neto fervilhava, começou a
raciocinar, o homem era um idoso, a família não queria saber dele, era doente,
a casa não era aberta há imenso tempo, há semanas que não aparecia na
universidade e na ginástica… das duas uma, ou a família se tornou consciente,
ou o homem estava lá dentro e não conseguia abrir a porta. Perante estas duas
hipóteses, o neto não teve pena da porta velha e desleixada que se desfazia e
deitou-a abaixo com um pontapé. O ar pesado saiu com a mesma força do pontapé,
o cheiro era nauseabundo e irrespirável. O neto pediu ao avô para ficar lá fora
e entrou com o braço a tapar as narinas à procura do amigo. A casa estava suja,
o pó cobria cada peça, não obstante haver uma arrumação generalizada das
coisas, o amigo parecia organizado e com experiência da vida em solidão. A casa
era pequena, escura, apenas com a mobília essencial, não havia muito por onde
procurar. No vazio da sala e da cozinha, restavam o quarto de banho e o quarto.
À entrada do quarto, o neto viu o corpo do amigo deitado na cama, parecia que
dormitava, a pele estava pálida. O coração do neto palpitou, chamou-o duas
vezes, até que em desespero colocou os seus dedos para verificar a pulsação…que
batia ao ritmo da sua fraqueza.
O INEM chegou em cinco minutos e o
diagnóstico foi perentório, a fraqueza era generalizada e iria precisar de ir
imediatamente para o hospital. O neto assentiu e segui-os no carro. O avô
estava apático com a situação. Havia um silêncio ensurdecedor no ar. O neto
rompeu com aquele estado:
- O avô está bem?
Precisa de alguma coisa? Fale comigo!
- Como é que isto
pôde acontecer?! Eu devia ter vindo mais cedo. Ele também não me ligou,
caramba!
- Avô, não se
martirize. A culpa não é sua. Pense que foi o avô que o salvou.
- Não, não. Foste
tu. Insististe em que viéssemos buscá-lo e não te limitaste a deixar-me ali à
porta. Preocupaste-te com uma pessoa que nem conhecias. Tenho orgulho em ti…
Esperaram no hospital durante umas
horas, até que uma médica veio falar com eles. O amigo estava muito fraco
devido à ausência ou ao pobre regime alimentar dos últimos dias. Estava
desidratado e foi mesmo preciso uma transfusão de sangue. A médica falava com
um ar sério e condenador. No final, disse que dentro de um ou dois dias o
podíamos levar para casa.
- Sra. Dra.,
estamos muito contentes em saber que o nosso amigo vai recuperar e que chegamos
a tempo. Quanto a levá-lo para casa, creio que o hospital deveria contactar os
familiares do paciente e informá-los do que se passou e do que poderia ter
acontecido.
- Peço desculpa,
pensei que fossem os familiares…
O neto e o avô foram ver o amigo que se
encontrava a dormir. Ficaram de passar pelo hospital no dia seguinte. No carro,
o neto perguntou ao avô se queria ouvir as notícias. O avô abanou com a cabeça.
Disse ao neto que ouvisse a sua música.
- Os teus amigos
são todos como tu? – o avô quebrou o silêncio.
O neto percebendo o medo nos olhos
húmidos e inchados do avô rematou.
- O avô nunca se
esqueça que eu só existo porque há um pouco de si em mim.
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