UMA FOTO, UMA LEITURA
Fotografia: António Tedim (http:\\antoniotedim.blogspot.com)
Texto: Rui Santos (http:\\cognitare.blogspot.com)
O sabor húmido da orvalhada chegou até
mim, sentia-a muito antes de me tocar, caminhou até mim com serenidade,
cobrindo suavemente cada parte deste meu corpo indolente com gotas de água
flácidas e leves. A cada manhã espero que o inevitável não aconteça, espero que
as minhas saudades se dissipem com o vento que me limpa, imaginando-me
novamente a deslizar nestas águas frescas e fraternas que me cercam num abraço
protetor, nestas águas que ignoram a minha inércia e evitam, dia após dia, que
esta carcaça esquecida se afogue. O cheiro da matina acorda-me o sonho de
voltar a vaguear neste manto líquido com o fulgor de quem renasce do abandono.
Os
braços esguios, longos e macios que espreitam na superfície da água afagam
timidamente o fundo do meu casco, chego mesmo a ter a sensação que o fazem
quase a medo. Deixo que percebam que estou exposto, que lhes tenho a confiança
necessária para que me sinta confortável com o toque quente e humente que se
vai apoderando, desde a proa até à popa. Não nego que há uma inquietação que
vai crescendo em mim, uma espécie de curiosidade com uma pitada de medo. As
carícias iniciais começam a tomar conta do casco, as ramagens finas que me
envolvem começam a tornar-se um corpo só, um corpo mais forte e denso, limpando
o musgo que já fazia parte de mim.
Hoje há
um toque mais intenso das águas que emergem até mim. Na matina as águas
costumam passear-se pelo meu casco numa rotina de reconhecimento do território,
muitas vezes procurei dizer presente, mas a palavra pareceu-me sempre excessiva
e optei sempre por não dizer nada, para evitar ter de dizer...esquecido. As
batidas das águas tornaram-se mais fortes, sem nunca serem bruscas, apenas o
suficiente para me agitarem. A inquietação que se iniciou há pouco começa a
ganhar outra intensidade, começo a sentir que algo se vai passar e não consigo
vislumbrar o quê. A ramagem que me limpa, acaricia e envolve-me; as águas
embatem contra mim como quem lava a cara pela manhã; algo se passa, todos sabem
menos eu, menos este pequeno barco perdido na imensidão desta lagoa.
O
interior do meu corpo sente o calor do sol que se abre para mais um dia, seca a
humidade do orvalho, deixando os bancos e os remos mais confortáveis para quem
quiser trilhar comigo estes caminhos à procura de serem desbravados. Os minutos
perdem-se pelo dia e não aparece ninguém a reclamar um barco perdido e
esquecido nestas águas que convidam a um passeio. O meu casco está limpo, a
minha cara foi lavada, o meu interior está seco e as águas convidam-me a
navegar sobre elas, e eu, continuo inerte neste recanto, desmemoriado da
história e da vida.
Com a
resignação habitual, a minha inquietação começou a acalmar, a ramagem que me
envolvia largou-me com impulso, ainda que continue a sentir as suas carícias,
as águas doces e delicadas envolvem-me numa ondulação que me afasta e, de
repente, dou por mim a deslizar pela lagoa que se recusou a esquecer-me,
fazendo de mim novamente um barco que sonha.
Sem comentários:
Enviar um comentário