terça-feira, dezembro 02, 2014

O Barco Que Sonha

UMA FOTO, UMA LEITURA

                                 Fotografia: António Tedim (http:\\antoniotedim.blogspot.com)
                                 Texto: Rui Santos (http:\\cognitare.blogspot.com)
 
 
O sabor húmido da orvalhada chegou até mim, sentia-a muito antes de me tocar, caminhou até mim com serenidade, cobrindo suavemente cada parte deste meu corpo indolente com gotas de água flácidas e leves. A cada manhã espero que o inevitável não aconteça, espero que as minhas saudades se dissipem com o vento que me limpa, imaginando-me novamente a deslizar nestas águas frescas e fraternas que me cercam num abraço protetor, nestas águas que ignoram a minha inércia e evitam, dia após dia, que esta carcaça esquecida se afogue. O cheiro da matina acorda-me o sonho de voltar a vaguear neste manto líquido com o fulgor de quem renasce do abandono.

            Os braços esguios, longos e macios que espreitam na superfície da água afagam timidamente o fundo do meu casco, chego mesmo a ter a sensação que o fazem quase a medo. Deixo que percebam que estou exposto, que lhes tenho a confiança necessária para que me sinta confortável com o toque quente e humente que se vai apoderando, desde a proa até à popa. Não nego que há uma inquietação que vai crescendo em mim, uma espécie de curiosidade com uma pitada de medo. As carícias iniciais começam a tomar conta do casco, as ramagens finas que me envolvem começam a tornar-se um corpo só, um corpo mais forte e denso, limpando o musgo que já fazia parte de mim.

            Hoje há um toque mais intenso das águas que emergem até mim. Na matina as águas costumam passear-se pelo meu casco numa rotina de reconhecimento do território, muitas vezes procurei dizer presente, mas a palavra pareceu-me sempre excessiva e optei sempre por não dizer nada, para evitar ter de dizer...esquecido. As batidas das águas tornaram-se mais fortes, sem nunca serem bruscas, apenas o suficiente para me agitarem. A inquietação que se iniciou há pouco começa a ganhar outra intensidade, começo a sentir que algo se vai passar e não consigo vislumbrar o quê. A ramagem que me limpa, acaricia e envolve-me; as águas embatem contra mim como quem lava a cara pela manhã; algo se passa, todos sabem menos eu, menos este pequeno barco perdido na imensidão desta lagoa.

            O interior do meu corpo sente o calor do sol que se abre para mais um dia, seca a humidade do orvalho, deixando os bancos e os remos mais confortáveis para quem quiser trilhar comigo estes caminhos à procura de serem desbravados. Os minutos perdem-se pelo dia e não aparece ninguém a reclamar um barco perdido e esquecido nestas águas que convidam a um passeio. O meu casco está limpo, a minha cara foi lavada, o meu interior está seco e as águas convidam-me a navegar sobre elas, e eu, continuo inerte neste recanto, desmemoriado da história e da vida.

            Com a resignação habitual, a minha inquietação começou a acalmar, a ramagem que me envolvia largou-me com impulso, ainda que continue a sentir as suas carícias, as águas doces e delicadas envolvem-me numa ondulação que me afasta e, de repente, dou por mim a deslizar pela lagoa que se recusou a esquecer-me, fazendo de mim novamente um barco que sonha.


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