UMA FOTO, UMA LEITURA
Olhar Perdido no Espaço (e no Tempo)
Sentei-me
no café para ler tranquilamente o jornal. Separo cuidadosamente os dossiers que
interessam e deixo de lado a publicidade. Peço o café, beberico-o
cuidadosamente, acolhendo paulatinamente cada trago na boca sôfrega daquele magnífico
líquido castanho de sabor amargo.
Observo
de soslaio a sala e, quando me preparo para ler as notícias que se repetem
semana após semana, vejo aquele olhar perdido no espaço (e no tempo). Um homem
na casa dos setenta anos, ora se dirige para a janela, ora afunda o seu rosto
no jornal, mudando raramente as páginas do periódico, não consigo ver qual é, mas
é daqueles que se oferecem nos semáforos. O seu olhar pequeno e rasgado está
apoiado por uma sombra escura e inchada, como se dois papos se tratassem. O seu
sorriso tímido de pouco à-vontade projeta a humildade que transpira em cada
gesto, o que magnetiza a minha atenção. Tem as mãos gastas, de pele rija e
calejada, com dedos fortes e encorpados, o seu fato de domingo e a pele escura quase
escondem a face marcada de rugas grossas e profundas. Em cada uma das linhas
daquela face morena consigo imaginar uma jornada da vida, vejo-o a nascer em
casa, a chorar pela primeira vez quando inspirou pela primeira vez seguido de uma
bofetadas fortes, a jogar à bola descalço festejando o golo que marcou com
aquela bola feita de trapos e meias rotas, o seu primeiro dia de escola, o seu
último dia do quarto ano, o seu primeiro dia de trabalho com onze anos, os cachaços
dos seus encarregados, a sua luta por não chorar, a sua resiliência para ganhar
uns trocos para ir a um baile, a sua primeira dança, o seu primeiro beijo, o
dia do seu casamento, o dia do nascimento do filho que não pôde assistir porque
estava a fazer turno no segundo emprego, o dia em que se reformou, o dia em que
conseguiu olhar para trás e respirar lentamente, sem pressas, apenas a
recuperar o fôlego.
Ambos
temos um chávena de café à nossa frente, eu com uma panóplia de dossiers dos
quais só metade se aproveita, e o homem, de fato grosso de cor castanha com
riscas finas, tem unicamente o exemplar oferecido. A sua cara transmite uma
serenidade de dever cumprido, não tem pressa, desfruta o momento com prazer, ao
contrário de mim que o faço quase como se de um ritual se tratasse. A sua
tranquilidade era de tal forma contagiante que deixei de lado os jornais e
deixei-me levar por aquela suave quietude, observando cada gesto lento e
preciso, cada momento importante, como o sorriso inocente, onde se podia ver a
falha dos dentes que caíram e não foram substituídos, a dificuldade em ler o
jornal, notando-se perfeitamente que a força que fazia para focar pedia a ajuda
suplementar de óculos, o pedido de um copo de água com a timidez de quem não
quer incomodar.
Quando a generalidade das pessoas vivem obcecadas com a carreira, o dinheiro, um bom carro, uma casa grande numa zona nobre, vivendo em função do que é estereotipado como ter sucesso, aquele homem de pele escura, corpo cansado e de trajes humildes, tem algo que poucos têm, a tranquilidade e serenidade de uma realização pessoal.
Aquele olhar perdido no espaço (e no tempo) encontrou-me, e eu, deixei-me guiar por ele.
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