UMA
FOTO, UMA LEITURA
Fotografia:
António Tedim (http://antoniotedim.blogspot.com)
Texto:
Rui Fontes Santos (http://cognitare.blogspot.com)
Nevoeiro
O meu corpo funde-se nas rugosidades que
arquitetam os traços históricos desta cidade misteriosa e invicta que acorda
para mais um dia. O meu corpo, denso e rarefeito, deambula neste matinal,
passeio-me por cada espaço, por cada aresta desta urbe, desde o chão pincelado
pelo brilho orvalhado da neblina – ora de alcatrão, calçada ou mesmo de
paralelos gastos e escuros – até que termino o vagueio diário, e quando
finalmente consigo ficar com o meu corpo totalmente espalhado como um cobertor
que se instalou no ar, planando um ambiente escuro e ambíguo, levanto-me ao
mesmo ritmo da vida da cidade, ao mesmo ritmo destas pessoas que fazem deste
Porto tão característico, destas pessoas que encaram todos os dias com a mesma
esperança, com a mesma certeza que por detrás de mim, que atrás deste cinzento
escuro, chegará um novo dia, um dia que poderá ser melhor do que o anterior...
Os dias seguem-se numa rotina instalada;
desde o cheiro exalado pelas padarias do pão acabado de cozer, cheiro quente
que conforta a brisa matinal; o perfume da mistura das flores frescas que se
acomodam nas bancas das floristas avivando o ar denso e rarefeito que emano; o
“ardina” que coloca os jornais nas portas das tabacarias, presos por um fio que
os aperta e pelas notícias que os sufoca; os primeiros carros a passar com as
luzes ligadas a trespassar o meu corpo denso e rarefeito. Tudo se afigura igual
ao dia que passou, tudo promete ser uma repetição do que já foi, mas tudo pode
ser diferente.
O meu corpo que se espelhou pela cidade
vai começar a levantar-se e, dentro em breve subirei, mas não deixarei de estar
presente na imagem que caracteriza esta cidade, estarei bem lá no alto a ver
mais um dia passar, um dia que pode ser igual ao anterior ou um dia que pode
ser o da mudança.
Algures neste corpo que se espalhou pela
cidade sinto uma prurido, um afagar, um esgravatar, não consigo decifrar onde,
apenas o sinto, apenas sei que é distinto do habitual, apenas sei que o dia já
não é igual aos outros. Como um cão que roda em si mesmo tentando ferrar a sua
cauda, remexo-me, inquieto, inseguro, à procura desta sensibilidade que não sei
o que é e que se agudiza, busco-a cada vez mais agitado, cada vez mais com uma
ansiedade curiosa. A cada segundo que passa o escarafunchar torna-se mais
intenso, mais incerto e desacertado, mas mais profundo. O meu corpo deixa-se
pairar na cidade mais tempo que o habitual à procura da razão daquela novidade
que está já a tornar este dia especial.
Depois de muito me revolver, e à medida
do aumento daquela sensação, descubro aquelas mãos pequenas e rechonchudas a
investigar o meu corpo denso e rarefeito. Primeiro vejo os seus dedos pequenos,
depois as mãos rechonchudas e, num desatino infantil, dá-se um esbracejar
desconcertante a furar o meu corpo, deixando um buraco grande que se dissolve
no ar. Aproximo o meu olhar intenso e fixo-o naquela criança de olhos azuis
celeste, que continuando a esburacar o meu corpo denso e rarefeito, e olhos nos
olhos, emite uma gargalhada inocente que me evapora.
Hoje, foi o princípio dos dias melhores
que os anteriores.
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