UMA FOTO, UMA LEITURA
Travessia
Parece não ter fim esta
ponte desmedida e austera, envolta neste ferro pesado e rígido, rasgada pelos
raios de sol, que teimam em passear pela cidade invicta ignorando o negrume que
tanto a embeleza. Caminho nela desde sempre, vou avançando, passo a passo, já a
percorri a grande velocidade, em jovem percorri-a a todo o vapor, com medo que
o amanhã me fugisse, vivi um sem número de histórias que marcaram a minha
existência. Com o passar dos anos, a destreza com que dava cada passo, com que
arriscava cada avanço foi perdendo o seu fulgor, comecei a acusar uma carga que
me pesava as costas. Já fui jovem e agora estou menos jovem, já tive o cabelo
forte e negro e agora tenho esta brancura que me cobre o couro cabeludo mostrando
bem que o tempo passou, já tive um corpo jovem e hirto e, agora, mesmo não
conseguindo erguer as costas, continuo a caminhar ao sabor do vento.
Prossigo a minha
caminhada com o mesmo empenho do início desta jornada, entrei nesta ponte, de
chão irregular que teima em fintar os meus pés, com o objectivo de chegar ao
outro extremo, independentemente do que que possa acontecer, vou consegui-lo,
com maior ou menor dificuldade, vou marchar até que os pés, que já pouco se
levantam, não consigam dar o próximo passo… Foi a olhar para a frente que cheguei
até aqui, desde o começo, sempre com o olhar colado na outra extremidade, sem
pressa de lá chegar, apenas sabia que queria chegar lá, saboreei cada momento
com o deleite que me merecia. Desde a infância até agora fui deambulando com
uma incessante procura pela felicidade – caí, levantei-me, voltei a cair e
voltei a levantar-me, vezes sem conta, dancei, namorei, embebedei-me nos bailes
da cooperativa, trabalhei, casei, tive filhos, netos, bisnetos, entreguei-me a
esta passagem sem medo do amanhã, sem medo desta dádiva que é jornadear em cima
desta ponte, umas vezes pérfida, outras vezes presenteando-nos a abertura dos
ferros, dando-nos o azul celeste do céu, a luz, a esperança, permitindo que
essa luminância nos encha a alma e nos permita dar mais um passo a caminho da
extremidade que se vai aproximando.
Hoje, ao chegar à
extremidade, mantenho o sorriso de a estar a caminhar, ainda que, na verdade, o
cansaço se tenha apoderado de mim a cada passada e, com isso, a força das
minhas pernas já não seja a mesma de outrora. Olhando para a reta final, ainda
sinto que consigo, sozinho, caminhar devagar, arrastando os pés de costas
curvadas e pesadas carregando comigo esta mala – a minha mala cheia de
histórias, cheia de lembranças, cheia de alegria – para quando chegar lá ao
fundo, na incontornável extremidade, onde a ponte que afinal era de ferro se
vislumbra em madeira branca e maciça, poder esticar-me com dignidade, olhar de
novo em frente e, de costas bem estendidas, a poder abrir e com os braços
fortes e musculados de outros tempos, deixar que tudo o que a encha se espalhe
no ar e caia lentamente no coração de cada um dos que me acompanharam nesta
jornada, porque tudo o resto trago comigo na minha alma.
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