terça-feira, julho 31, 2012

A Vida Num Minuto


UMA FOTO, UMA LEITURA
Fotografia: António Tedim (http://antoniotedim.blogspot.com)
Texto: Rui Santos (http://cognitare.blogspot.com)

A Vida Num Minuto



O maço de tabaco Português Suave, cor amarelo torrado, baila nas minhas mãos como um brinquedo, manejo-o como se tivesse sido sempre o mesmo, aquele primeiro e que me agarrou a esta ligação umbilical que me compensa, que me conforta, que me completa. Olho para ele e só agora o respeito, o entendo, só agora percebo que ele sabe tudo de mim e nunca proferiu uma palavra, quer fosse para discordar, quer fosse para anuir ao que eu dissesse, ao que eu fizesse ou ao que pensasse. Esta cumplicidade de longa data faz com que a nossa ligação perdure no tempo, desde a minha juventude até aos dias de hoje, onde me encontro, tranquilamente, sentado num dos muitos bancos do jardim da praça a gozar a paz da agitação das crianças que brincam nos baloiços e escorregas.
Tiro um cigarro. Olho para ele e admiro-o como se fosse a primeira vez, como se fosse aquele primeiro cigarro que roubei às escondidas, aprecio a brancura destas novas mortalhas que cilindricamente envolvem o tabaco prensado, sôfrego e claustrofóbico. Brinco com ele entre os dedos durante uns segundos, coloco-o delicadamente na boca e acendo-o com um isqueiro Bic... a sua libertação e o seu fim começaram. Dou uma passa forte, deixando a ponta reluzir, numa luz revigorante e alaranjada, perdurando assim uns bons segundos. Enquanto eu inspiro, saboreando a inalação do fumo, o cigarro vive avidamente a sua alforria. Em uníssono, eu paro e a luz abranda, eu expulso o fumo que resta na minha boca e, o cigarro liberta um fumo quase branco, dançando na atmosfera aos ziguezagues, como se estivesse a festejar o resgate.
Deixo o cigarro arder sozinho numa liberdade juvenil e irreverente nas minhas mãos, de tempos a tempos resiste a cada investida minha, a cada passa que o consome, que lhe encurta a mortalha sem conseguir nada de mim. Outrora levava consigo os meus pensamentos, os meus sonhos, as minhas ambições... agora leva apenas a minha companhia, neste parque onde o sol espreita por entre as ramagens das árvores altas e seculares, protegendo-nos do calor abafado. Continuamos no mesmo registo de sempre, continuamos sem falar, continuamos a comunicar através do que não se diz, do que não se fala, apenas comunicamos do que sentimos, sabendo que nos entendemos, que nos escutamos no silêncio, na mudez que enche este banco de jardim, de tábuas de madeira pintadas a verde musgo, gastas, com marcas feitas com chaves ou canivetes, corações com nomes que não se percebem (ou não se perceberam). Continuamos a não fazer nada que não seja sermos a companhia um do outro, nesta tarde que já vai longa, neste dia que nos foge.
A mortalha está a chegar ao filtro, o cigarro viveu fugazmente estes minutos, libertou-se, viveu na minha companhia e, agora, parte, resignado e calmo. Não o apago, despedimo-nos lentamente, no arder entre os meus dedos amarelados, na ponta que diminui a cada passo, no vigor do início que perde a sua luz incandescente.
Sentado neste jardim, seguro-o cuidadosamente nos dedos da mão direita, paulatinamente deixamos interromper esta nossa cumplicidade e, juntos, observamos o pôr-do-sol que, sem que tenhamos dado conta, já vai longe, nesta vida que tem um minuto.
 



segunda-feira, julho 09, 2012

A Janela


UMA FOTO, UMA LEITURA
Fotografia: António Tedim (http://antoniotedim.blogspot.com)
Texto: Rui Santos (http://cognitare.blogspot.com)

A Janela


Olho e sinto-te como outrora. Imagino-te a subires estas escadas debaixo de um guarda-chuva velho abrigando-te destas nuvens que choram incessantemente as lágrimas grossas e espessas que se colam solidariamente a esta janela, em forma de gotas, perdidas, a deambularem entre os caminhos indefinidos do vazio frio e gélido desta superfície húmida. Olho para cada uma delas sem conseguir encontrar o destino que procuram, ora escorregam pela direita, ora se perdem pela esquerda. Há apenas um elemento comum, a falta de rumo, nesta existência que terminará em breve quando embaterem no fundo do vidro, e aí, juntas, formarão um único e comum pedaço de água. Olho e sinto-te com saudade, o aperto no coração provoca o início de uma lágrima salgada que também ela nascerá nestes olhos cansados e encontrará poiso nas rugas da minha cara e escorrerá perdida à procura do nada.
                  Recordo-te a subires estas escadas escuras e gastas, com esforço e cuidado para não caíres, com especial atenção nestes dias de chuva, davas passos pequenos, e eu, olhava-te desta janela de peito apertado de preocupação. As gotas continuam a valsar sem rumo, sem consciência de que estão a cair, de que em breve perderão a sua liberdade. Umas descem precipitadamente como se não houvesse amanhã, outras vagueiam a demorar o seu destino e, uma delas desce na vertical, na rebeldia de todas as outras, fá-lo lentamente, como se controlasse a velocidade da sua queda, como se controlasse o seu destino, como se controlasse o meu olhar fixando-o na sua viagem, ditando também ela o rumo da lágrima que nasceu salgada e que desce em uníssono, traçando a sua passagem com um ardume por cada poro desta pele fina, escura e gasta cheia de caminhos perdidos.
                  Vivo-te no limbo destas lembranças que se misturam na realidade quimérica que me consola neste apartamento escuro, vazio e sem vida. Posso abdicar de tudo que resta neste cúbiculo, menos desta janela, menos desta montra, onde tu estás, lá em baixo de baixo de um guarda-chuva, a subires paulatinamente as escadas com a saca das compras, a parares para recuperares fôlego, a olhares para o cimo da escadaria, a medires quanto falta, e eu, nesta janela, ficava na imponência de quem não pode ajudar, a ver-te, com a força que só as mulheres têm a venceres mais uma batalha.
                  A gota de água que caiu do céu, num choro de uma nuvem, permanece na sua velocidade cruzeiro a percorrer a janela, numa carícia deliciosamente demorada e suave, a acompanhar a lágrima que escorre na minha face cada vez mais ardente, cada vez mais saudosa. Olho para as escadas e continuo a sentir-te, cada vez mais intensamente, nesta dor dilacerante fecho os olhos com força, abro-os novamente, a gota está a chegar ao seu destino, mas no instante final para...permanece uns segundos parada e cai ao mesmo tempo que a lágrima que marcou a minha cara num ardume como outrora o poeta disse, “amor é fogo que arde sem se ver”.


A Menina de Nariz Rosado

Nota de Autor: Este pequeno conto foi escrito a pedido da minha filha há 3 anos. Na altura, quando me sugeriu o Título, eu não sabia como po...