UMA FOTO, UMA LEITURA
Fotografia: António Tedim (http://antoniotedim.blogspot.com)
Texto: Rui Fontes Santos (http://cognitare.blogspot.com)
Lado a Lado
As águas calmas da lagoa ondulavam-se num
movimento harmonioso acariciando levemente o barco, cândido e imaculado,
construído com madeiras novas, pintadas de um branco singelo, mas ao mesmo
tempo denso e compacto. Sentamo-nos cada um na sua ponta, deixamo-nos embalar
sob o sol jovem, forte e quente, com os olhos fixos um no outro e o sorriso a
preencher-nos a cara jovem e apaixonada.
Sem perdermos tempo agarramos nos remos
com as duas mãos e, em uníssono, remamos com o fulgor de quem sentia que o
mundo podia acabar no minuto seguinte, sempre de olhos fixos um no outro,
sempre em uníssono, sempre com um sorriso que nos preenchia, que nos dava
forças para continuar. Fizemo-lo durante dias, semanas, meses, anos, fizemo-lo
naquele barco que começava a ficar com a tinta gasta e baça, com a madeira a
começar a abrir pequenas fendas, sob o sol a envelhecer e a perder calor, com
os olhares a perderem-se no ruído que nos rodeava, com as braçadas a perderem
lentamente a sintonia, mas a remarmos, ainda que cada vez com menos fulgor.
O barco continuava o seu percurso, em boa
verdade, porque tu remavas mais do que eu, em boa verdade eu percebi isso e não
fiz nada para alterar esse estado, nem sempre estive atento para ver se
precisavas que te substituísse, já para não falar de remarmos juntos, com a
mesma vontade, com o mesmo esforço, de olhos colados um no outro, a brilharem
do mesmo entusiasmo, ou simplesmente a remarmos juntos, ainda que fosse de
forma descoordenada, mas ao menos remávamos juntos, ou não foi por isso que
entramos no barco? Vi-te várias vezes a remar pelos dois, e no conforto da
inércia olhava para os teus olhos penetrantes e doces como a cor de mel que os
preenchia, para a tua pele morena, para o teu cabelo forte e negro, para o teu
sorriso sensual, olhava e confiava que não fazia mal que remasses pelos dois,
porque no meu íntimo eu havia de compensar depois...só agora percebo que não
podemos compensar o passado.
Na lagoa, de brisa fresca proveniente do
arvoredo verdejante que a ladeava, via os barcos como o nosso e nunca me dei ao
trabalho de os olhar com atenção, de os analisar e ver neles o nosso espelho.
Uns passavam a grande velocidade, com os olhares imbuídos numa pele terna e
vivida permaneciam fixos um no outro e o sorriso ainda lhes preenchia a cara,
como nós, outrora; outros deambulavam num ritmo incerto e sem direção; outros
encontravam-se à deriva, com os remos inertes nas presilhas dos barcos, com
musgo a colorir a madeira rasgada pelo tempo. Sempre pensei que, embora o meu
desleixo, haveríamos de remar juntos até à eternidade, imaginei que quando não
tivéssemos forças, neste caso quando tu deixasses de remar, iríamos estacionar
o barco debaixo de um árvore e ali ficaríamos, de olhos fixos um no outro, de
sorriso aberto, a perder-nos no tempo da paixão que nos juntou e, lado a lado
acompanhávamos o sol a pôr-se.
Hoje, quando acordei, o barco apenas se
mexia pela ondulação das águas calmas da lagoa, provocadas pelos barcos que
passavam, procurei-te e não te vi, olhei em redor e não te encontrei, tentei
vislumbrar onde estarias, mas apenas conseguia ver os barcos a passarem, com
casais, de olhos fixos um no outro e de sorriso largo. Levantei-me e olhei para
os remos, peguei neles outra vez, como no início e, de pé, com um remo apenas,
remei, ora para o lado direito, ora para o lado esquerdo, tentei dar a volta
para trás, para te chamar e dizer que lamento, que agora percebo que o barco só
anda com duas pessoas a remar, mas a lagoa só tinha um sentido.