Prólogo
O dia estava soalheiro, convidava a um longo e calmo passeio no enorme e antigo jardim da cidade. Como habitualmente, deambulei naquelas ruelas de terra fina, circulei por todo o parque, escolhendo cuidadosamente onde é que, hoje, me iria sentar. O jardim envolve-nos numa espécie de jardins do éden, envoltos num arvoredo frondoso que nos rodeia e nos abraça, despoletando uma sensação de frescura sempre que nos protege dos raios quentes do Sol. A verdura dos vastos jardins verdejantes, bem cortados e molhados, bem como a terra ainda húmida da rega regular, refresca-nos a alma e deixa-nos limpos para aspirarmos a candura daqueles campos.
Gosto de me sentar todos os dias em locais diferentes, sempre em função daquele banco que me oferece ter um momento de vivacidade e ao mesmo tempo, a tranquilidade necessária para poder estar a ler, ou simplesmente apreciar a paisagem que me abraça. Por mais que conheça o jardim, e os seus caminhos sinuosos que se serpenteiam sem nunca se encontrarem, a procura do local propicia-me uma boa caminhada, fazendo-me sentir com o vigor de outros tempos. Gosto particularmente de ver a juventude com os pais, a brincar, a jogar à bola, ou simplesmente a correr, talvez porque tenho alguma propensão a não gostar de me sentir sozinho. É por isso que escolho sempre um local onde possa estar sentado a ler e ouvir no fundo o som da vida. Não recordo se já me tinha sentado naquele banco, estavam a pintá-los a todos, a tinta cheirava a fresco, optaram por um vermelho escuro, mas bastante brilhante, o banco encontrava-se imaculado. Antes de começar a ler, percebi que havia uma parte que não tinha sido restaurada, estava pintada, mas conseguia-se perceber que anteriormente a madeira tinha sido marcada com as inscrições de umas letras, cuidadosamente poupadas pelo pintor. Passei os dedos por elas e senti claramente que se tratava de duas letras e um sinal: “A + M”.
Passei várias vezes os meus dedos pelas inscrições, com a leveza e calma necessárias para perceber qual o tipo de letra marcada, tentando adivinhar a idade de quem tinha inscrito aquelas iniciais: seria um casal de adolescentes que com as hormonas ao rubro fizeram juras de amor naquele banco e hoje nem se lembram de tal ato? seria um casal que, na clandestinidade, marcaram o seu amor num dos marcos da cidade, na impossibilidade de o revelar à sociedade? seria apenas e só uma brincadeiras de namorados? À medida que passeava os meus dedos grossos por aquelas letras, mais conjeturas fazia na minha cabeça, muito provavelmente resultado da veia romântica que sempre norteou a minha vida. Depois de várias análises ao inscrito naquele pedaço de madeira, consegui concluir duas coisas: a primeira é que não foi premeditado, os rasgos da madeira tinham sido repetidos com uma espécie de chave pois cada um era ladeado num paralelismo perfeito; a segunda conclusão é que eram adultos, pois os traços era firmes e profundos, como quem o fez com a força de quem ama verdadeiramente.
Todas as conclusões eram baseadas em premissas tendenciosas, não havia forma de perceber exatamente o que se passou naquele banco, nem quando, mas eu quis dar-me a história de um amor impossível que fora inscrito naquele banco, para se perpetuar nas gerações da cidade, inspirando outros a amar incondicionalmente.
Olhei para o livro que trazia comigo, ainda não tinha começado a lê-lo, havia sempre qualquer coisa que me impedia de iniciar a folheá-lo. Pousei-o ao meu lado, não conseguia dedicar-me a uma história que não fosse a daquela das inscrições, e como não a sabia, comecei a escrever mentalmente a história daquelas inscrições como desejava que tivesse acontecido, dei por mim a procurar um papel e uma caneta para escrevinhar, mas com a cabeça a debitar ideias, deixei-me levar pela ordenação de pensamentos para que pudesse começar a viver a história de amor que estava marcada nos jardins vetustos que me rodeavam.
I
Estávamos no final da década dos anos trinta, viviam-se tempos conturbados com o início da segunda Grande Guerra Mundial, aliada a um tempo de ditadura política. A guerra tinha acabado de começar e as expectativas que Portugal pudesse voltar a juntar-se aos Aliados pairavam no ar de todas as famílias. O clima pesaroso que se vivia não estava propenso a grandes festividades, e todos aqueles que podiam levar uma vida de classe média eram considerados uns felizardos, sendo muitas vezes marginalizados pelos seus concidadãos, e vice-versa. Havia um clima de crispação silenciosa de parte a parte, não obstante o medo colocasse na maioria das pessoas a necessidade superior de relações urbanas com o respeito devido.
O jovem Afonso, de dezanove anos, estava a dar os primeiros passos na empresa do pai, tratava-se de uma empresa tipográfica, pelo que tudo o que era ali impresso tinha de passar impreterivelmente pelo crivo da censura prévia imposta pelo Estado Novo. A responsabilidade de haver uma falha era demasiado grande, pelo que o seu pai nomeou-o responsável por acompanhar o encarregado para todo o lado, de modo a que conhecesse toda a empresa, bem como os meandros que teria de frequentar para poder estar salvaguardado. A tarefa não era fácil, havia uma azáfama diária que começava bem cedo, e muitas vezes terminava só de madrugada, mas Afonso era um jovem abnegado e cheio de vontade de mostrar que era muito mais do que o filho do dono da tipografia. Pouco a pouco, começou a dominar as tarefas e os circuitos sociais e políticos em que teria de marcar presença, cada vez mais intensos à medida que o tempo passava.
Com o decorrer dos dias que iam passando, Afonso foi-se inteirando da responsabilidade da sua função como um todo, lia os artigos que lhe chegavam e enviava para a análise da Lei da Imprensa, onde cada vez mais vinham com mais cortes e com mais anotações que não as do autor. Não obstante o desconforto tornar-se cada vez maior, ele e o seu pai sabiam muito bem as regras do jogo, pelo que não havia muito a fazer, até porque eles simplesmente imprimiam os textos daqueles que permaneciam fiéis aos seus princípios e não deixavam de escrever a verdade.
Era um tempo difícil para todos, obviamente que para uns mais do que outros, mas havia algo que unia quem desejava a paz que fugia há muitos anos, independentemente da classe social, todos desejavam poder cheirar o ar puro da Primavera que se havia tornado rarefeito e impossível de propiciar os cheiros floreais que desabrochavam nos jardins, ou nas árvores que iam perdendo os seus tons outonais e começavam a colorir a cidade de uma miscelânea de cores do arco-íris. A Primavera tinha chegado, mais uma vez, mais um ano, mas com ela não veio o renascer da esperança para aquela população que vivia angustiada com o futuro incerto que assolava a cada nascer do Sol, e quando se pensa que cada dia é uma nova oportunidade, naquele tempo, cada dia era apenas mais um dia de constrição que teria de ser superado.
No fim de cada dia de trabalho, Afonso procurava desanuviar daquela pressão sufocante que tinha que cumprir, e que de discordava visceralmente, por isso era comum procurar espaços com pouca gente para poder estar a pensar como seria uma vida em que não tivesse que deambular preso em liberdade pelas ruas da cidade. O seu local de eleição era o jardim da cidade. Um local imponente, criado para mostrar a força do regime. Nele emergiam frondosas árvores, que agora começavam a oferecer um cenário colorido ao jardim. A ladear os caminhos de terra que serpenteavam aquele espaço, numa espécie de labirinto, havia arbustos verde-escuros de meio metro, que exalavam um cheiro forte e fresco a floresta, permitindo aos transeuntes que enchessem os pulmões de um ar fresco, expulsando o ar tóxico que absorviam durante o dia.
Depois de vaguear durante alguns bons minutos, Afonso sabia que os caminhos de terra pelada iriam dar ao seu local favorito, era um simples banco como todos os outros naquele parque, mas nele conseguia ter uma visão caleidoscópica da vida daquele jardim, e para culminar, estava posicionado para assistir ao pôr-do-sol, que timidamente deslizava por entre o arvoredo frondejante e se perdia na linha imaginária do fim do oceano.
Naquele fim de tarde, Afonso estava furioso, todas as edições que lhe haviam chegado para imprimir nas suas máquinas grandes e robustas, tinham vindo escandalosamente ceifadas pela censura, produzir edições com meia dúzia de páginas seria incomportável para os jornais e para a própria tipografia, que teria que ligar a maquinaria sem a permitir aquecer. No preciso momento em que se sentou, percebeu que o banco estava ocupado e rapidamente se colocou de pé, escusando-se em desculpas por tal comportamento:
- Senhorita, as minhas mais sinceras desculpas. Estava completamente distraído e não percebi que o banco já estaria ocupado. Aceite as minhas desculpas e procurarei outro banco. – sentenciou Afonso com a caro ao rubro.
- Desculpas aceites, mas, por favor, acalme-se que não cometeu nenhum crime, pelo menos digno de tal embaraço. – respondeu a jovem rapariga.
- Gosto de respeitar a privacidade dos outros, e com tantos bancos disponíveis, não quis parecer grosseiro ao ponto de me sentar especificamente neste banco. – justificou Afonso.
- É verdade, há muitos bancos disponíveis, mas serão mesmo iguais a este? Já viu a paisagem que nos oferece este banco, e daqui a uns minutos poder-se-á observar…
- Um pôr-do-sol único. – completou Afonso a frase.
- Ah, por isso se sentou neste banco, e por pouco em cima do meu colo! – gracejou a rapariga com o embaraço de Afonso.
- Acredite que vinha a pensar em mil e uma coisas e nem dei pela sua presença. Peço-lhe novamente desculpas por tal invasão.
- Não sei se fico mais ofendida por se ter sentado no banco de forma abrupta, ou se fico ofendida por ter repetido que a minha presença lhe foi invisível. – terminou a frase enfrentado Afonso que se mantinha de pé.
- Não, de todo, seria impossível não dar conta de uma senhorita com tamanha classe e beleza. – defendeu-se Afonso.
A jovem tinha de facto uma beleza estonteante, os seus cabelos fartos e negros, contrastavam com os seus olhos grandes, penetrante com tons de verde misturado com traços de cor-de-mel. A sua cara era esguia e os lábios eram ligeiramente carnudos, levemente pintados de um rosa claro da cor dos seus lábios. Notava-se que era uma rapariga de uma classe social alta, estava extremamente bem vestida e tudo nela era perfeito.
Desde o início da conversa que Afonso não desgrudou os olhos da rapariga, mas qualquer avanço seria com certeza mal interpretado, pelo que preferiu deixar para um próximo encontro. Mas a jovem além de bela era destemida e independente, e depois de uma bela gargalhada fitou Afonso e convidou-o a sentar-se no banco, havia espaço para cerca de quatro pessoas, pelo que não seria embaraço para nenhum dos dois estar no mesmo banco.
- Mas senhorita, o que poderão pensar as pessoas? – refutou Afonso.
- Cavalheiro, deve preocupar-se unicamente com o que eu poderia pensar, e como não vejo nada de mal, convido-o a sentar-se a assistir o pôr-do-sol comigo, na verdade nunca assisti acompanhada, por isso, se fizer o obséquio e não for demasiada maçada, sente-se e assistamos a esta maravilha da natureza.
- Muito bem, será um enorme prazer. Se me permite. – sentou-se Afonso encabulado com tamanha firmeza da jovem.
O pôr-do-sol não tardou e mais minuto, menos minuto que o habitual as enormes árvores do jardim deixaram trespassar o brilho alaranjado do Sol que se escondeu atrás do oceano. Os dois jovens ficaram a olhar para o horizonte, pensativos, durante todo aquele cenário nenhum deles proferiu uma palavra, respeitando a privacidade do outro, até porque nenhum deles tinha alguma vez assistido acompanhado. Foi Afonso quem tomou a palavra depois de largos minutos a absorver aquele espetáculo.
- É de facto revigorante assistir a esta maravilha da natureza. – suspirou Afonso.
- Sem dúvida um verdadeiro privilégio que a natureza nos oferece sem pedir nada em troca…
- Agradeço-lhe o privilégio do convite, e se permite, para que não saiba com quem assistiu, o meu nome é Afonso. Muito prazer, senhorita.
- Mariana. Chamo-me Mariana.
II
Os dias para Afonso tornaram-se cada vez mais longos, os minutos e as horas tinham perdido a dimensão de tempo, e o que antes era um dia agora parecia-lhe uma eternidade. Por um lado, tinha perdido todo o interesse por aquilo que fazia, considerava que não estava a contribuir para a instrução da população, antes pelo contrário, a contrainformação era tanta que seria preferível que uma das máquinas avariasse e impedisse circular aquela informação preparada em função do regime ditatorial que ganhava poder a cada dia que passava. Por outro lado, desejava sair para ver o pôr-do-sol, que é como quem diz, queria voltar encontrar a jovem Mariana. Desde aquele dia, nunca mais a encontrou, por vezes ficava até mais tarde no jardim, mas as suas tentativas mostravam-se infrutíferas, não havia qualquer sombra da jovem senhorita que o tinha deixado tão inquieto. Na verdade, para Afonso, havia passado uma eternidade, mas na realidade tinha passado apenas uma semana, o que já era o suficiente para o deixar angustiado.
No final de cada dia de trabalho, Afonso deslocava-se ao jardim levando sempre consigo um livro, passeava pelos caminhos serpenteados do jardim romântico da cidade e procurava em cada banco um vislumbre de Mariana. As semanas iam passando e não havia sinal de Mariana. Afonso não podia dar-se ao luxo de passear no jardim o dia todo, e especulava se aquele horário não havia sido um feliz acaso, onde pôde conhecer Mariana. Nesse dia, sentou-se no banco do jardim e esperou pelo pôr-do-sol, sentiu-se revigorado, mas incompleto, nunca mais aquele pôr-do-sol teria o mesmo sabor quando comparado com aquele feliz dia em que conheceu a mulher dos seus sonhos. Antes de se levantar, Afonso olhou para o lugar que seria de Mariana e num impulso, pegou nas suas chaves e cravou no banco a letra “A”, na esperança que Mariana pudesse sentar-se naquele banco enquanto trabalhava e visse a sua inicial, e a entendesse como uma mensagem encriptada.
Passara precisamente um mês, estava um dia soalheiro, e apenas se conseguia estar no jardim porque as árvores frondosas e a rega levantavam uma frescura para os seus visitantes. Afonso, nesse dia, foi direto ao banco na esperança de a encontrar, ou ver algum sinal dela. O banco estava vazio, assim como ficou a sua esperança de a voltar a ver. Sentou-se, pousou o livro ao seu lado, e olhou em frente. As crianças brincavam, corriam pelos caminhos labirínticos de terra pelada, riam-se numa espécie de ignorância inocente de quem não sabia o que se vivia naquela época. Afonso sorriu, gostava de os ver livres e descomprometidos a correr, saltar e jogar à bola, fazia-lhe bem à sua alma que estava perdida e ao seu coração que estava despedaçado.
- Boa tarde, Cavalheiro. Dá-me licença de utilizar o seu banco?
Naquele momento, Afonso que havia fechado os olhos por instantes, ficou atónito com o surgimento inesperado de Mariana. Depressa se tentou recompor, levantando-se de imediato fazendo-lhe uma saudação cavalheiresca com o chapéu.
- Boa tarde, senhorita Mariana. Com certeza que sim, é o mínimo que poderia fazer para retribuir a sua gentileza do outro dia.
- Lembra-se do meu nome? Que giro, passado tanto tempo pensava que já não se lembraria de mim. Pergunto-lhe porque a situação hoje é outra, estamos em posições completamente diferentes.
- Então, porque diz isso? – perguntou Afonso curioso.
- No outro dia, eu estava num banco sem dono, hoje o banco tem dono, ora veja aqui esta marca. Parece-me um “A” de Afonso bem marcado e preciso, ou não foi o senhor?
- Bom, para tudo há uma explicação. Na verdade, não sei o que me deu para tal infantilidade. Foi recentemente…
- Eu sei, eu vi a marca há poucos dias.
- Pois, foi recentemente. Olhe, na verdade, não sei porque o fiz, ou talvez o saiba. O que aconteceu é que estava sozinho, o pôr-do-sol tinha terminado e senti-me só, e num gesto irrefletido e infantil marquei a minha inicial, mas não com qualquer intenção de tomar o banco como meu.
- Bom, sendo assim, vou-me sentar. – sentando-se à medida que ia falando – Já agora, como é que o fez? Não me diga que anda de ferramentas consigo, ou pior, com alguma faca!
- Não, de maneira alguma. O único objeto que tinha comigo eram as minhas chaves, e foi com elas que fiz isso. Sinto-me envergonhado e um pateta.
- Posso ver as suas chaves? – perguntou Mariana.
- Claro. Aqui estão.
Toda aquela conversa era completamente atípica para Afonso, o ar cândido de Mariana não condizia com o seu espírito, havia algo nela que o libertava daquela prisão diária. Começou por observar as chaves, uma por uma, e depois olhou friamente para a chave utilizada.
- Foi esta? – perguntou Mariana para ter a certeza.
- Sim, foi.
- Então, se me permite. – e Mariana cravou uns dez centímetros abaixo a letra “M”, com o mesmo vigor da anterior.
- O que faz, senhorita? – perguntou estupefacto Afonso.
- O mesmo que fez, assim o banco é pertença do Estado com usufruto exclusivo de nós os dois. Só mais um pormenor, falta aqui qualquer coisa. – cravando um “+” no meio das duas letras – Perfeito!
- Bom, se nos pedirem a identificação seremos os dois levados para a esquadra como dois miúdos apaixonados que na sua rebeldia quiseram deixar a marca do seu amor.
- Relaxe, não somos miúdos. – e deu uma gargalhada no exato tom do que uma senhora é ensinada.
- A senhorita…
- Mariana, trate-me por Mariana. Este formalismo depois de termos marcado o banco não faz qualquer sentido, não concorda.
- Sim, de facto, depois disto, acho que nos podemos tratar pelo nome próprio. – com a garganta seca recomeçou – Como eu estava a dizer, a Mariana é destemida, apenas lhe importa o que sente, não procura desculpas nos outros. Isso é de louvar. Mas não teme que possam fazer outras interpretações destas inscrições cravadas no banco?
- O Afonso tem outra interpretação para estas simples inscrições?
- Já que estamos a falar abertamente… eu marquei o banco na esperança que a Mariana passasse por aqui durante o dia e pudesse ver a minha inicial. Não foi um impulso, foi premeditado. Perdoe-me se a estou a ofender, mas depois daquele dia não consigo pensar neste momento do final de tarde sem a ter na minha companhia. Bem sei que depois do que estou a dizer é inconveniente, pelo que peço que aceite as minhas desculpas.
- Bom, de facto não esperava que fosse tão direto. Tinha-o como um cavalheiro muito conservador…
- Mais uma vez, peço desculpa, mas percebi hoje que se não fosse honesto com a Mariana, seria um cretino.
- Deixe-me terminar, por favor, Afonso. Eu não sou destemida nem nada que se pareça. Naquele dia, senti uma grande empatia por si, pois percebi que era um cavalheiro distinto, cheio de receio de ser indelicado, por isso achei-lhe muita graça, até porque é tão cuidadoso nas palavras, que me deixou segura. Depois, para terminar, percebi que tínhamos o mesmo escape, ver o pôr-do-sol no final do dia neste banco. Mas não me respondeu à minha pergunta, tem outra interpretação para o meu ato “destemido”?
- Não sei se é uma interpretação ou um desejo.
- E qual é?
- Gostaria de a conhecer melhor, gostaria que as nossas iniciais cravadas na madeira nova deste banco do jardim pudessem significar mais do que duas letras num banco de jardim. Dá-me a honra de a conhecer melhor?
- “A + M”, assim seja. – rematou Mariana.
O Sol começou a baixar, por entre os ramos grossos e fortes das árvores seculares, os seus raios iluminavam os sorrisos que se abriam nas faces de Afonso e Mariana, até ficarem a olhar no horizonte o cair do pano do primeiro ato da peça das suas vidas.
III
Nos dias seguintes, Afonso vivia com outra alegria, embora levasse a cabo algumas tarefas que iam contra tudo o que acreditava, o desejo de passar os finais de tarde com Mariana tirava-lhe toda a amargura que pudesse ter naqueles riscos de “Lápis Azul” a rasurar os documentos que lhe chegavam. Ele sabia que havia uma certa dose de egoísmo da sua parte, mas era mais forte do que ele, a felicidade que se apoderou dele fê-lo abstrair-se daquele mundo de repressão.
Os encontros no jardim imponente da cidade começaram a ser quase diários, Mariana surgia sempre elegante e Afonso, como cavalheiro de boas maneiras, já estava à sua espera. Durante os encontros, as conversas surgiam naturalmente, sempre sobre assuntos de interesses comuns, como livros, cidades que gostariam de conhecer, terminando invariavelmente sobre o magnânimo jardim que os rodeava e os deixava respirar sem que houvesse amanhã. Naquelas conversas, não havia espaço para qualquer tema desagradável, ambos sabiam os tempos que viviam, mas optaram por reservar aquele pequeno espaço de tempo como uma redoma de felicidade.
- Os meus pais gostavam de o conhecer. – atirou Mariana a seco.
- A mim? Os seus pais sabem que nos temos encontrado? – disse aflito Afonso.
- Sim, aliás, há dias em que a nossa governanta se esconde atrás daquele arvoredo para depois lhes ir contar tudo – disse rindo-se da cena patética da sua governanta.
- E só agora me diz?
- Não achei relevante. Como não estamos a fazer nada de mal, simplesmente ignorei e nem comentei em casa que a tinha visto.
- Mas os seus pais aprovam estes nossos encontros?
- Isso não sei, nunca lhes perguntei, nem tenciono fazê-lo. A vida é minha, e sou eu quem tenho que aprovar. Agora tenho de lhes dar a oportunidade de conhecer o homem que me anda a cortejar.
- Depois diz que não é destemida – disse Afonso sorrindo de orgulho ao ouvir a palavra “cortejar”.
- Então, posso agendar um jantar lá em casa? Quando tem disponibilidade?
- Quando vos for mais oportuno, eu ajustarei a minha disponibilidade.
- Muito bem, amanhã. Quanto mais cedo melhor.
- Quer-me dar alguma pista para fazer boa figura?
- Seja tal como é comigo, ninguém deve mudar para agradar o outro.
Depois daquele convite inesperado, Afonso celebrou estar tudo a correr bem, e apreciou aquele fim de tarde com um avanço inesperado pousando delicadamente a sua mão por cima da mão de Mariana. Ambos tiraram os olhos do horizonte e fitaram-se com um sorriso aberto de felicidade.
No dia do jantar, Afonso apressou-se para chegar a casa e colocar-se o mais apresentável possível. Não fazia a mínima ideia de como era a família de Mariana, apenas percebeu que tinham uma governanta, e que os pais eram atentos aos movimentos da filha. Colocou o seu melhor fato, e escolheu uma gravata a preceito. Os sapatos tinham sido previamente engraxados e brilhavam como novos. Quando se olhou ao espelho, pensou o quanto mudara desde que Mariana entrara na sua vida, ainda que tivesse sido há tão pouco tempo, pois a sua personalidade era tão forte e vincada que nunca havia mudado um comportamento para agradar outra pessoa, mas por Mariana era capaz de fazer tudo para a agradar.
De chapéu colocado, saiu em direção a casa de Mariana, mas antes passou pela florista onde havia reservado um ramo de flores para oferecer à mãe de Mariana, na ausência de saber quais as suas flores preferidas, pediu um ramo elegante para uma senhora distinta que fosse condicente com o seu extrato social. Chegou um minuto antes das vinte horas, sempre lhe haviam ensinado que se deve chegar pontualmente a qualquer encontro, no limite, antes vale um minuto adiantado do que um minuto atrasado. A casa era enorme, tinha quatro frentes, com umas paredes imaculadamente pintadas de branco. A toda a volta, havia um relvado cortado recentemente, circunscrito por uns arbustos de metro e meio para criar privacidade. As portadas da casa eram todas em madeira escura, bem envernizada e brilhantes. Os vidros das portadas estavam tão transparentes que parecia que não existiam. Naquele momento, Afonso percebeu o motivo de os pais de Mariana se poderem ter dado ao luxo de enviar a governanta espiar os seus encontros, devia haver mais empregados para poderem ter a casa tão bem estimada.
Depois de respirar fundo, Afonso tocou na campainha, medindo o tempo preciso do toque, nem foi um toque de fugida, nem um toque estridente, foi o quanto baste para dar sinal da sua chegada. A porta de entrada abriu-se e veio ao seu encontro a famigerada governanta.
- Boa noite, senhor Afonso. Seja bem-vindo. Por favor, acompanhe-me, os senhores já estão a descer. Pode aguardar aqui no hall. Posso guardar o seu chapéu?
- Sim, por favor. Obrigado. – tartameleou Afonso.
No cimo das escadas, estava Mariana acompanhada dos seus pais, desceram as escadas alcatifadas de um vermelho escuro, com uma barra dourada a prender a alcatifa em cada ponta. Dos três apenas o pai vinha com cara séria, Mariana descia descontraída com um sorriso iluminado e a mãe apresentava os traços a quem a filha havia herdado a beleza e simpatia. Como esperava, seria o pai a fazer as honras da casa.
- Boa noite, caro Afonso. Seja bem-vindo à nossa casa. É um prazer conhecê-lo, finalmente. Já ouvimos falar imenso de si. – iniciou o pai de Mariana a conversa para quebrar o gelo.
- Boa noite, senhor Cerqueira Gomes. O prazer é todo meu.
- Apresento-lhe a senhora Cerqueira Gomes.
- Muito prazer, Sra. Dª Cerqueira Gomes. Tomei a liberdade de lhe trazer umas flores.
- Que bonito arranjo! Muito gentil da sua parte e de bom gosto – disse sorrindo. O prazer é todo nosso.
- Boa noite, Mariana. – atirou Afonso sem pensar duas vezes.
- Boa noite, Afonso. – sorriu em cumplicidade Mariana.
- Bom, as saudações estão feitas, vamos entrar para a sala de estar, enquanto não servem o jantar. – dirigindo-se o pai de Mariana ao carrinho das bebidas. – Aceita algum aperitivo antes do jantar, Afonso?
- Estou bem, obrigado.
- Vá, sinta-se em casa. Posso servir o mesmo que para mim?
- Bom, já que insiste, sim, agradeço.
O dia estava quente, Afonso ainda estava tenso, e temia desfazer-se em suor. O pai de Mariana foi preparar dois Porto Tónicos, cuidadosamente medidos nas doses, e serviu com gelo e limão, enquanto todos se sentavam nos majestosos sofás que ornamentavam a sala cheia de estantes com livros, uma grafonola e discos e bastantes quadros.
- Aqui tem, com este calor, sabe bem uma bebida fresca. Saúde!
- Saúde!– retribuiu Afonso.
- A Mariana disse-nos que trabalhava na tipografia da família. Como está a correr o negócio?
- O meu pai precisava de ajuda e eu acabei por seguir o negócio. Na verdade, a nossa tipografia é bastante solicitada, primamos pela qualidade e daí que muitas das impressões do país tenham origem na nossa tipografia.
- Isso é bom de ouvir, pois disse algo muito interessante, quando primamos pela qualidade, tudo corre melhor, o pior que pode acontecer a uma sucessão é o desleixo, mas parece-me que o seu pai não corre esse risco. – fitou Afonso à espera de uma resposta.
- Não correrá, sou bastante consciente dos deveres e obrigações que a nossa empresa representa para o país, pois embora os textos não sejam nossos, eles devem ser impressos com o superior interesse de propiciar conhecimento e informação à população.
- Eu diria que temos aqui uma certa dose idílica na sua missão do dia a dia, o que só faz bem, entenda-se.
- Sim, de facto. Quando queremos fazer algo bem, temos que acreditar que vamos contribuir para algo melhor, caso contrário estaremos a fazer por fazer, sem qualquer objetivo, sem um propósito final.
- Então o negócio vai de vento em pompa?
- Já teve melhores dias, os livros são cada vez menos editados, os jornais têm cada vez menos páginas, por isso, não se pode dizer que estejamos nos nossos melhores tempos, mas fazemos o nosso trabalho com o mesmo brio, isso ninguém nos tira.
- Humm… deduzo que esteja a falar dos documentos que são revistos pela censura.
- Papá, já chega de interrogatório – interveio Mariana salvando Afonso, ou temendo a sua resposta.
- Estamos apenas a conhecer-nos e achei muito interessante um jovem com um posicionamento na vida tão firme e responsável. Peço que me desculpe se fui inconveniente.
- Não, de todo. – respondeu Afonso depois de um gole no seu Porto Tónico.
O jantar foi servido às vinte e trinta, em ponto. A pontualidade britânica primava naquela casa. O jantar foi um delicioso pato assado com laranja, a travessa parecia um arranjo de mesa, o pato estava tostado no ponto certo, envolvido com acompanhamentos coloridos que só no prato se conseguiam descortinar.
Durante a refeição, a conversa foi fluindo num tom menos fastidioso, perguntaram como é que Afonso e Mariana se tinham conhecido e Afonso contou a história, omitindo a parte em que marcaram o banco do jardim. Não havia nada a esconder, por isso a conversa foi fluída, complementada por Mariana que brincava dizendo que tudo se iniciou com o direito à posse do banco de jardim da cidade. A mãe da Mariana falava pouco, mas tinha um olhar que coordenava todos os empregados, como se falassem por sinais de fumo. À sobremesa, foi servido um crumble de maçã com gelado de baunilha, e estava delicioso.
- O café será servido na sala de estar. – informou a mãe de Mariana.
- Pois bem, caro Afonso, agora podemos retomar a nossa conversa sem importunar as senhoras da casa. Deixou-me curioso, acha que devia haver menos critério na informação que lhe chega para imprimir?
- Como lhe disse a nossa empresa imprime os textos dos nossos clientes, e nós apenas nos cingimos a escolher quem queremos “tipografar”, não aceitamos qualquer pedido de impressão, pois temos um nome que já vem do meu avô a conservar. No entanto, parece-me que tem havido um crescente excesso de critério daquilo que se pode escrever, pois todos os textos passam por mim, e eu vejo que há textos que são meramente informativos do que se passa no país, daí que se fosse eu a escrever aquela peça, ficaria frustrado.
- Sabe, Afonso, nós muitas vezes temos de cortar os males pela raiz, daí que esses textos tenham que ser acertados pelo superior interesse nacional e ordem pública.
- É um ponto de vista que tenho de respeitar, mas, como compreenderá, o superior interesse nacional merece que não haja falta de informação.
- Chegaram os cafés! – irrompeu Mariana com a governanta atrás de si. – rapidamente percebeu que tinha chegado ou em boa hora, ou tarde demais.
- Ótimo, sentemo-nos então. – ordenou o pai.
Depois daquela conversa, Afonso queria passar o mais despercebido possível no resto do jantar, percebeu que ele e o pai de Mariana estavam em lados oposto sobre o que era melhor para o país, pelo que falar mais sobre o tema só serviria para azedar a relação. Depois do café, Afonso tentou agilmente tornar as conversas mais abertas para todos, de modo a fugir a mais um interrogatório. Falaram mais um pouco e, às dez e trinta, Afonso agradecendo o jantar percebeu que eram horas de se retirar. À saída, cumprimentou novamente todos e voltou a agradecer o convite.
- Até à próxima, caro Afonso. – apertou a mão de Afonso com firmeza e com um olhar penetrante.
- Até à próxima, senhor Cerqueira Gomes.
Quando saiu do portão, Afonso voltou o olhar para trás e viu Mariana a acenar-lhe da janela do seu quarto, sorrindo e enviando-lhe um beijo.
IV
Nos dias seguintes, Mariana não compareceu ao seu encontro, Afonso estranhou aquela ausência e relacionou-a de imediato com o jantar. A pequena afronta da sua opinião contrária à do seu pai foi o mote para que Mariana fosse proibida de estar com Afonso. O desencontro durava há uma semana, quando Afonso decidiu passar por casa de Mariana num final de tarde. Bateu no portão, e depois de alguns segundos – que para Afonso pareciam eternos minutos, quem veio ao seu encontro foi o pai de Mariana, dirigiu-se com ar pesado ao portão, sem o abrir.
- Boa tarde. – disse secamente o pai de Mariana.
- Boa tarde, senhor Cerqueira Gomes. Vim saber de Mariana. Desde o nosso jantar que não nos temos encontrado no jardim da cidade e fiquei preocupado.
- Diga-me, Afonso, o que quer da minha filha? – disse o pai sem paciência.
- O que quero? Com todo o respeito, senhor, mas se isso não ficou evidente no jantar, eu di-lo-ei com todas as letras: quero conhecê-la, respeitá-la e amá-la para o resto da minha vida. Sei que sou novo, mas nunca fui mulherengo e nunca tive um relacionamento, porque estava sempre a trabalhar, e o que tenho com Mariana ultrapassou os planos da minha vida.
- Caro Afonso, você é jovem e encontrará outra pessoa por quem se vai apaixonar e vai ser feliz. O Afonso e Mariana não estão predestinados.
- Discordo! – disse Afonso sem ponderar as palavras e o tom – Peço desculpa pelo tom, mas quem decidirá se nós estaremos predestinados seremos nós os dois, e o nosso relacionamento não está nas mãos de mais ninguém.
- Pois, muito bem, jovem Afonso. Quer casar com a minha filha, quer casar com uma mulher que fica constantemente doente semanas a fio? É isso que quer para a sua vida? Ficou sem fala? Onde está o homem de há minutos? – disse o pai irritado.
- Doente? Mas o que tem Mariana? Desde quando? Posso vê-la?
- Não, não pode. A Mariana sofre de uma doença que ainda não foi diagnosticada, e por vezes tem que ficar semanas fechada no quarto porque não tem forças para se levantar. Responda, ainda quer casar com a minha filha?
- Mais do que tudo! – atirou Afonso.
O duelo de titãs durou largos minutos, com a mãe a espreitar da janela com um lenço a limpar as lágrimas. O pai de Mariana explicava a Afonso que não deixaria a sua filha nas suas mãos, pois ele iria deixá-la por cansaço, seria um fardo que só os pais são capazes de suportar. Afonso ripostava, e exigia ver Mariana.
- Afonso, nós estamos em lados opostos em muitos temas, mas, no que concerne, à Mariana queremos ambos o melhor para ela, e o melhor para ela é ficar connosco. – defendia o pai.
- Dê-me uma oportunidade de mostrar que o amor vence mais vezes que a razão. – pediu Afonso ao pai, que exasperado abanava a cabeça.
- Entre… vamos conversar melhor lá dentro.
Na sala onde haviam estado, o pai puxou de um whiskey e sentou-se frente a frente com Afonso. Antes havia chamado a mãe de Mariana para saber se a filha podia receber Afonso. Estavam ambos à espera, e enquanto esperavam, o pai informou Afonso que, se Mariana aceitasse o relacionamento, seria de acordo com as suas regras: ele teria acesso a Mariana e daria todo o suporte médico que ela precisasse, teriam que morar perto da sua casa, e não interferiria em nenhum momento na vida privada deles. Esta última condição surpreendeu Afonso, as regras eram simples e genuínas, pelo que aceitou.
- Falta saber se Mariana vai querer esta vida para si – disse o patriarca.
Quando a mãe chegou à sala, haviam passado uns bons trinta minutos, os dois levantaram-se, e perguntou o pai ansioso:
- Então, o que disse Mariana?
A mãe, surgiu com o seu sorriso simpático, e disse:
- Vamos deixar que seja Mariana a dizer o que decidiu.
Com a ajuda da governanta, apareceu Mariana, debilitada, frágil, segredando ao ouvido da governanta algo, que mais tarde percebemos que seria para a ajudar a sentar-se. Quando já estavam todos sentados, Mariana olhou Afonso, os dois ficaram presos no olhar largos minutos sem proferirem uma palavra. Afonso sorriu, procurando nela uma resposta, mas não conseguiu mais do que terminar com aquele jogo de olhares.
- Ninguém decide a minha vida, eu sou a única dona dela, por isso, tudo o que já falaram vale zero para mim. – disse Mariana com um vigor que vinha das entranhas. – Eu é que contaria ao Afonso quando achasse que era a altura ideal e se essa altura chegasse.
- Mas filha, o Afonso apareceu, e eu tive que lhe contar. – defendeu-se o pai.
- Mariana… – interpelou Afonso.
- Espera, por favor, Afonso. Deixem-me terminar. Eu não contei nada porque não queria que o Afonso tivesse pena de mim, se ele me amasse verdadeiramente eu contaria e ele decidiria.
- Afonso, o que temos é tão recente e eu serei um fardo para ti. As coisas poderiam ter sido diferentes, mas não foram, por isso, peço que deixemos a nossa história por aqui.
- Não, recuso-me. É tarde demais para esquecer o que sinto por ti, por isso, peço que esqueças tudo o que te rodeia, e responde-me a uma simples pergunta: queres casar comigo?
- Que tolice! – disse o pai. – Então a minha filha pede para deixar as coisas por aqui e você pede-a em casamento?
- Basta, é a Mariana que tem que responder. – interpôs a mãe.
Os olhos de Mariana brilhavam, e, no canto do olho direito, houve uma lágrima que escapou ao seu controlo. A governanta ajudou a compor-se na cadeira. O jogo de olhares começou de novo, mas desta vez, foi curto, foi interrompido por um sorriso largo e iluminado de Mariana.
- Afonso… – disse Mariana, suspirando.
- É um sim? – apressou-se Afonso.
- O que é que eu te posso oferecer? O que vês em mim?
- Podes-me dar uma história sem fim. Casa comigo?
- Então fá-lo, como deve ser. – brincou Mariana.
- Caro senhor Cerqueira Gomes, peço-lhe a mão de Mariana em casamento.
- Concedida…
- Mariana, quem ama apenas sabe que ama, e vai descobrindo o porquê desse amor ao longo da vida, queres casar comigo? – perguntou Afonso ajoelhado em frente a Mariana.
- “A + M” – respondeu Mariana com os olhos humedecidos.
V
Nos dias seguintes, Afonso visitou Mariana todos os dias, trazia com ele sempre algo que lhe permitisse passar o dia mais alegre, esperando por ele ao final da tarde.
Aos poucos, começou a levar Mariana ao jardim de sua casa e passeava com ela às voltas do casarão. Mariana estava cada vez mais fortalecida, o noivado havia-lhe dado uma energia suplementar e Afonso não a poupava a mimos.
O casamento deu-se numa cerimónia simples e muito familiar, foi um pedido expresso de Mariana, queria apenas aqueles que ela amava no dia em que aquela inscrição do jardim da cidade passaria a ter novo significado. Mesmo na simplicidade, Mariana estava linda e rejuvenescida, iluminando o salão de festas com a sua gargalhada no tom perfeito.
Afonso e Mariana foram morar para uma casa térrea com um jardim vasto ao redor da casa, para que nas suas crises, que cada vez foram menos frequentes, pudessem namorar num banco idêntico ao do jardim da cidade.
A vida sorriu-lhes, tiveram três filhos, duas meninas e um rapaz. Afonso conseguiu aguentar a tipografia e conciliar com a vida familiar. O seu pai reformou-se e os pais de Mariana eram presença assídua lá em casa, e tal como prometido, nunca houve qualquer interferência na vida privada do casal.
Quando fizeram vinte e cinco anos de casados, Afonso ofereceu a Mariana um livro que escreveu durante vários anos. Era uma história de amor.
- Não tem título? – perguntou Mariana.
- As histórias de amor não têm nome. – sorriu Afonso.
Epílogo
Olhei em frente e fiquei a observar o grande lago que ornamentava o centro do jardim da cidade. Fiquei a ver a ondulação provocada pelos patos que passeavam em fila, sempre gostei de ver as crias atrás da mãe, por onde quer que ela fosse, também os patinhos seguiam o seu rasto.
Ainda faltavam alguns minutos para o pôr-do-sol, agora iria vivê-lo como na história que imaginei para aquelas inscrições, como seria ver aquele pôr-de-sol agarrado àquela história que me saiu da alma? Será que irei sentir a presença daquele casal que se enamorou com a bênção do Sol que os banhava a cada dia de namoro? O Sol começou a descer, posicionei-me como Afonso se posicionaria, pousei o meu livro do meu lado direito, para deixar o lugar esquerdo livre para imaginar Mariana.
Ao longe, o Sol começava a raiar o parque por entre o arvoredo verde-escuro e frondoso, numa quietude irrompida pela entrada em cena de um casal de crianças que corriam desalmadamente pelo parque numa corrida desenfreada.
- Parem, meninos! Já chegamos. – gritou a uns metros de mim uma senhora octogenária.
- Onde é, Avó? – pararam as crianças à procura do lugar.
- É aqui, neste banco. – disse a senhora.
- Aqui? Onde está?
- Vejam, está pintado de fresco, mas ainda se vê bem. São estas as marcações.
- Avó, este “A + M” são as iniciais do Avô Afonso e tuas?
- Sim, “A” de Afonso e “M” de Mariana.
- E o “+”?
- Significa uma ligação sem fim.
- Vá, deixem-me sentar neste canto e vocês sentam-se onde o avô Afonso se sentava. Já só vamos ver a parte final. Olhem o horizonte.
Ao meu lado estavam sentadas as personagens da minha história, e com elas olhei o horizonte e vi o pôr-do-sol acompanhado. Quando o Sol se estava a esconder atrás do mar, a avó Mariana ficou a olhar o horizonte, com os olhos cor-de-mel humedecidos. Eu via tudo com clareza, mas eles não me viam.
- Avó, está aqui um livro – disse o rapaz.
- Um livro? – respondeu a avó arrepiada.
- Sim, deve ser antigo porque já não se vê o título.
- Deixa-me ver, por favor.
A Avó Mariana pegou no livro, era igual ao que lhe tinha sido oferecido por Afonso, mas as páginas estavam em branco, prontas para serem preenchidas por uma história de uma vida.
- Pega nele e quando encontrares o teu verdadeiro amor, escreve a vossa história.
- E que título lhe dou? – questionou o rapaz
- Não lhe dês um título, as histórias de amor não têm nome.
No momento em que o rapaz pegou no livro, senti o Sol a chamar-me e eu deixei-me ir, leve como uma pena, vendo-os cada vez mais distantes, mas com um sentimento forte da certeza que o amor não tem espaço nem tempo…é presente e eterno.