Nota de Autor:
Este pequeno conto foi escrito a pedido da minha filha há 3 anos. Na altura, quando me sugeriu o Título, eu não sabia como poderia escrever para que ela pudesse ler e reler retendo mensagens escondidas, por isso, este foi um dos mais difíceis textos que escrevi, mas também dos textos que mais prazer me deu.
Espero que os meus poucos, mas bons, leitores apreciem e vivam-no como eu.
A Menina de Nariz Rosado
Texto: Rui Fontes Santos
Ilustração: Maria Leonor Santos
Data: 2024-04-19
Prólogo
Os recomeços são sempre uma incógnita para mim, não obstante haver sempre uma continuidade de linhagem, há sempre alterações significativas sobre o modo como vai ser a minha vida de tempos a tempos. Hoje, por exemplo, é diferente do que foi outrora, hoje vivo experiências novas, sentimentos novos, angústias novas, ou seja, vivo em função da realidade deste presente.
É interessante viver estas novas aventuras e para complementar com as que vivi anteriormente, recorro às minhas lembranças, vivo-as como se fossem hoje para não as esquecer, tento absorver o máximo que posso desta nova fase, e gosto sempre de ser como quem me antecedeu, ser uma boa ouvinte da minha nova amiga, sou a sua confidente.
Nunca me queixei desta minha realidade, sou inclusive uma felizarda, porque podia estar esquecida num canto sem luz, sem ninguém com quem me preocupar ou que se preocupasse comigo, mas não, estou presente na vida de outra pessoa, que me abraça, que chora comigo, que partilha as suas alegrias e que se ri das suas vicissitudes. Gosto desta minha nova vida, mais do que esperava, é um começo ou recomeço, sinto-me feliz por fazer outra pessoa mais completa, sou aquilo que ela precisa e estou lá quando ela precisa, assim como noutros tempos também foram comigo.
Não posso dizer que a minha vida é sempre um marasmo e que sou apenas aquilo que os outros querem, por vezes tenho de ser ouvinte, outras vezes tenho de confortar, depende dos dias, das fases da vida, mas o meu papel não é passivo, o amor que transmitimos nunca é inócuo.
Neste momento, vou para onde me levam, estou sempre bem aconchegada e sou sempre bem tratada, estou sempre com roupa lavada e a condizer.
O meu nome é Maria Clara, sou a boneca de uma jovem, e é desta forma que vivo mais uma vida.
Capítulo 1
Quando encerrei os olhos, não imaginava que fosse ficar tão ansiosa com esta nova fase, percebo que estou de novo a sentir na alma o calor da vida, percebo pelas vozes longínquas que serei acolhida, mas não sei como é que vou ser tratada – em boa verdade parecem-me pessoas educadas e de bom trato – mas, mesmo assim, as épocas passam, as gerações mudam, e o incerto causa-me uma angústia que não sentia desde criança, mas que felizmente se dissipa rapidamente, para minha tranquilidade.
Estou dentro da caixa, uma caixa larga e com cheiro perfumado, imaculada e ainda consigo sentir o leve cheiro do plástico, como se fosse se fosse nova. Está escuro dentro da caixa, mas ouve-se uma agitação alegre, vozes que gargalhavam, outras que brincavam, imagino que será uma época festiva, não me recordo quando é que tinha ido para a caixa, nem quanto tempo tinha ficado lá, pelo que ansiava sair e ver o que me esperava.
Senti a caixa a mexer, ouvi o papel que me cobria a ser rasgado, com cuidado, cheguei a sentir uma ternura sem perceber o porquê, quando a caixa foi aberta havia muitas luzes e muitas pessoas ao redor de mim, todos a olhar com curiosidade, e quando abri os olhos, vi uma menina de olhos azuis-celestes, a lacrimejar, a pegar em mim com muito cuidado, como se eu me pudesse partir, abraçou-me de forma materna e disse-me “és linda!”, “és a minha Maria Clara!”.
Era Natal, e foi a partir desse dia que eu fui dela e ela foi minha, a nossa relação tornou-se umbilical, deixei de perceber quando a vida é o presente ou o passado, naquele dia, perdi-me na realidade, e as roupas com que a menina me cobriu para eu não ter frio eram minhas mas vinham do seu armário, o seu colo era terno e quente, como eu sentia quando pegava naquela que outrora foi minha, até no deitar, aquele beijo de boas noites senti-o na bochecha e nos lábios. Naquele momento, eu senti-me dela e ela minha.
Capítulo 2
Chove. A água precipita-se pelos céus azuis e embate cálida e terna nas janelas, deixando-se escorrer uma fraterna gota nos vidros limpos que servem de entrada para a luz que alumia o quarto, primeiro timidamente, por entre os orifícios das duas primeiras linhas da persiana, e aos poucos, quando o dia se impõe, a claridade acinzentada descobre os recantos do quarto. Junto à janela encontra-se a cama, generosamente larga para uma menina, coberta com lençóis finos, brancos e frescos. A luz sobe até à cabeceira onde encontra uma cara de uma jovem menina, de tez clara, cabelos claros, lisos e longos. Ainda não são horas, ainda apetece dormir, ou pelo menos enganar a luz com os olhos fechados, a fintar o acordar, mas já não há sono, apenas preguiça de quem ainda tem o tempo à sua espera.
Depois de alguns minutos a fintar a luz do dia, a jovem puxa os lençóis para trás e levanta-se, ensonada e chama a mãe. Falam, não percebo bem o que dizem, mas a menina quer ir para o banho. Sempre gostou de tomar banho de manhã, refresca o corpo e a alma. Hoje, dia de Natal, pediu para tomar um banho com sais, gosta de fazer desenhos com a espuma espessa que exala um cheiro fresco a jasmim. Fica a tomar banho até os dedos ficarem enrugados, depois sai e veste-se, sempre muito bem arranjada, a vaidade começa cedo, e nesta idade percebo que toma as referências dos pais. Quando sai do quarto de banho, vai dar um beijo na face do pai, que a espera para tomarem o pequeno-almoço juntos. O pai, que também se levantou com um sorriso forçado, desfez a barba, e deleitou-se com um duche rápido. Antes de sair do quarto, concorre com a mulher e perfuma-se com um perfume forte e amadeirado que deixa um lastro por onde passa.
A mesa do pequeno-almoço é ponderada pela mãe, que procura um lugar para colocar o carrinho onde eu estou, após pedido da jovem que manifesta uma posse acolhedora neste dia de inverno. O pequeno-almoço é divertido, todos falam muito, procuram consensos sobre o que fazer durante o dia, e depois de tudo bem discutido, termina com um cheiro que me traz memórias de um passado, o cheiro de um café moído na hora enche a sala, e os pais deliciam-se com um expresso, bem tirado, com máquina de grão, e com o creme a demorar-se no topo do líquido castanho-escuro.
Capítulo 3
O mês de dezembro sempre provocou em mim um sentimento de recato doméstico, gostei sempre de ficar mais por casa do que sair, pelo que, depois das aulas, o meu destino era sempre recolher a casa, sentir o cheiro do calor da lareira que fumava a lenha seca que o meu pai cortara no verão, tronco atrás de tronco e depois empilhava na cave, em lugar seco. Lembro-me dos meus pais chegarem cedo a casa, chegavam sempre depois de mim, vinham dos seus trabalhos, e a minha mãe ou meu pai, ainda com as roupas de trabalho, gostavam de ir junto da lareira, e acendê-la, parecia que era terapêutico para eles, depois de o fogo pegar e a lenha começar a estalar, eles ficavam sentados a olhar aquela luz laranja-forte a emanar uma luminescência que dava um conforto singular ao nosso lar.
Quando senti aquele cheiro a café forte e bem tirado, com todos à mesa a apreciar aquele momento de família, lembrei-me que, ao pequeno-almoço de Natal, bebíamos um café de saco bem quente com umas carcaças torradas com queijo amanteigado ou compota de vários sabores. Ainda que nunca me tenha faltado nada, eram aqueles momentos a que eu dava mais valor nas férias de Natal, estar em família e aproveitar para ouvir as conversas dos adultos enquanto eu tomava conta da minha boneca, não me recordo do nome dela, era minha, tinha uma tez mais ou menos como eu, e tinha uma nariz rosado, tal como eu tenho agora, julgo que será genético, e eu gostava de passar o meu dedo pelo seu nariz arrebitado, afagando-o com o meu afeto de quem é responsável por alguém.
Depois do pequeno-almoço, eu ia brincar com os meus brinquedos, em especial com a minha boneca, levava-a ao colo, bem coberta até ao quarto e começava a tratar dela. Na verdade, nunca imaginei que a frescura dos toalhetes antes de me colocar a fralda fossem tão frescos, hoje, ao sentir a menina a acariciar o meu nariz e dizer-me o quão linda eu sou, enquanto me limpa antes de colocar a fralda, sinto o quanto é reconfortante e agora percebo porque as bonecas também fecham os olhos para dormir um sono de bebé depois da fralda e do biberão de leite invisível, sinto as minhas mãos húmidas a limpar a minha boneca ao mesmo tempo que sinto a frescura dos toalhetes no corpo e deixo os meus olhos fecharem para um sono de boneca.
Capítulo 4
Depois do pequeno-almoço, recolhi ao meu quarto, enquanto esperava que os meus pais me chamassem para irmos ao parque. O meu quarto era muito bonito, era todo em madeira clara, com móveis cheios de recortes manuais, onde muitas vezes passava os meus dedos, que se perdiam nas cornucópias com que a madeira brincava comigo, era relaxante estar deitada na cama simplesmente a observar a janela e ver o mundo como uma película de um filme. Naquele Natal, tinha companhia, brincava com a minha boneca, continuo sem me recordar do nome da boneca, mas era um nome pomposo e imponente, daqueles que se dão a uma princesa, que foi o que eu senti quando a recebi. O céu estava soalheiro, por isso, ainda que o frio fosse predominante, podíamos ir brincar para o parque e eu estava radiante, ia poder andar de baloiço e de escorrega e sentir o cheiro da terra húmida do frio sempre que raspo os pés no chão. Depois podia ir brincar para o jardim, que era muito bonito e muito bem tratado, na Primavera ficava coberto de flores coloridas que desabrochavam e preenchiam o parque com uma alegria que só as crianças sentiam, mas, nesta altura do ano, apenas as plantas verdes que se dão com o frio permanecem, ainda assim eram muito bonitas, de média altura deixando os seus ramos a cobrir a falta das flores.
Há uma voz que se faz entoar no quarto, uma voz doce, tranquila e harmoniosa que se vai aproximando do quarto, e quando olho em volta e procuro os meus pais, o quarto já não é o mesmo, é branco com pormenores púrpura, é um quarto de menina mas sem os rococós que o meu quarto tem, é moderno mas elegante, simples mas completo, e é nesse momento que verifico que não sei se vou ao parque, porque não é a mim que me chamam, é à menina de olhos azuis-celestes, da cor de um mar cristalino, que me acaricia o nariz arrebitado que tenho, e me cobre de roupas improvisadas para eu não ter frio, e é nesse momento que eu percebo que vou viver aquele dia de Natal pelos olhos e alma da menina.
O parque é diferente, tem um lago onde os patos nadam, há as progenitoras que lideram o caminho que os patinhos seguem em linha como se fossem uma extensão da sua mãe, rabiando sempre que curvam fazendo parecer uma cauda gigante. A menina leva-me ao colo, falando de quando em quando mostrando-me o parque que parece não ter fim. Além do lago enorme, existem árvores de troncos grossos e robustos, mostrando a imponência da sua antiguidade, com ramos altos e frondejantes, ainda que despidos desta altura do ano, não perdem a sua beleza. A menina é que define os caminhos por onde vão andando, os pais sorriem com a inocência dela a deliciar-se com os caminhos livres do parque, com caminhos em terra seca, ladeados por enormes relvados muito bem tratados, cortados uniformemente, ainda com poucas pessoas na rua, até porque, em dia de Natal, as famílias juntam-se para almoçar.
A menina continuava a deambular livre pelo parque, correndo quando via os pássaros a voarem em forma de V, ou quando via os pavões a exibirem toda a sua exuberância de cores exóticas. Os pais riam e pareciam felizes que a filha se realizasse com os pequenos prazeres da vida. Durante todo o caminho, a menina ia me dizendo
“Olha, Maria Clara! Que giro são pássaros coloridos, mas não podemos chegar muito perto.” – dizia de forma entusiasmada e protetora.
outras vezes dizia-me sussurrando os seus lugares favoritos, como árvore que era tão antiga que as suas raízes saíam da terra permitindo subir um pouco em altura.
“Aqui temos que ter muito cuidado, pois podemos cair, mas conseguimos subir só um pouco e dar um salto!” – aqui dizia em voz baixa como se os pais não percebessem.
A felicidade surge-nos de formas diferentes, no tempo e no espaço, mas a felicidade como um todo é a soma de momentos felizes, não existe estado de felicidade plena, cada um de nós é mais feliz quantas mais vivências felizes conseguir colecionar ao longo da vida. E, neste momento, em que estou a pendular neste baloiço azul e vermelho, a ranger sempre que chego ao topo, senti-me livre e capaz de voar. Não consigo deixar de rir sempre que sinto o frio da barriga quando o banco volta para trás, apetecendo-me ficar aqui a rir sem fim. Os meus pais sorriem e pedem que tenha cuidado enquanto eu abrando para ir andar de escorrega. Tem as mesmas cores do baloiço, não é muito alto nem muito rápido, mas é sempre irresistível andar nele e sentir o ar fresco na cara. Em seguida, fico a rodopiar, com os braços abertos e a saia a abrir com a força do ar, fecho os olhos e quando os abro, estou nos braços quentes e cuidadosos da menina que me senta ao lado dela na mesa de Natal.
Capítulo 5
À medida que os dias vão passando, a nossa relação começa a ficar cada vez mais umbilical, durante o dia brincamos, a menina fala comigo, confidencia-me as suas angústias, ainda que nesta idade sejam pequenos dilemas próprios da imaturidade de uma criança que está a entrar na perceção da realidade da vida, à noite os pais da menina contam uma história, muitas vezes improvisada, e no fim acariciam-nos para adormecermos, sem distinção.
O tempo vai passando e cada vez sinto-me mais parte desta família, sou um elemento que me consideram em todos os momentos.
A menina vai para escola e eu fico em casa, no carrinho, confortável até que ela chegue e me conte tudo o que se passou durante o dia. Há uma cumplicidade muito forte entre nós, por vezes nem é preciso contar os detalhes, parece que lemos os pensamentos uma da outra, estiradas na cama a olhar o candeeiro ornamentado com pequenos traços de cor púrpura. A menina está de olhos fechados a respirar fundo, imagino um dia intenso, imagino-me a atar os meus atacadores e a correr de seguida para o recreio, para brincar ao elástico, à macaca, ou a outra brincadeira qualquer, enquanto não soa o segundo toque que nos lembra que temos de estar sentadas naquelas secretárias monolugares, ligeiramente inclinadas e no topo um rasgo arredondado para colocarmos os nossos lápis, borracha e caneta bic cristal. A professora fala para a turma e chama-me para um exercício ao quadro, de louça negro e áspero. Com o apagador, de madeira com uma esponja dura para limpar o giz, clareio o local onde tenho de escrever, agarro um pedaço de giz branco, e escrevo no quadro o resultado do problema de matemática, o giz desliza a custo e faz aquele barulho que provoca um ligeiro arrepio. Depois explico à turma o meu raciocínio e a professora confirma que está correto, agradeço e volto ao meu lugar, dando o lugar a outro colega.
No final das aulas, ficamos a brincar um pouco no recreio, sempre às mesmas brincadeiras de meninas, e no fim de uns quinze minutos são horas de regressar a casa. Pego nas minhas coisas, vou para casa, muitas vezes temos companhia até meio do caminho, depois sigo sozinha até casa, entro e cumprimento a minha mãe, vou lavar as mãos e lancho um copo de leite com um pão com marmelada, queijo ou simplesmente manteiga. De barriga composta, faço os trabalhos de casa, com atenção para que não venha nenhum recado para casa, e no fim, posso brincar, pego na minha boneca, deito-me na minha cama com ela e conto-lhe o meu dia, ou simplesmente ficamos estiradas na cama a olhar o candeeiro, de madeira entrelaçada com pequenos ursinhos a espreitarem, até que os nossos olhos fechem.
Capítulo 6
A vida de uma boneca pode ser muito ingrata, somos muito importantes num determinado momento, no momento da novidade, e depois somos colocadas de parte, ou, por outro lado, podemos ter uma vida cheia quando ficamos presentes na vida de uma amiga, vivendo com ela todos os momentos da sua vida através da sua presença, sem ficarmos encaixotadas num sótão escuro e silencioso. A decisão de qual das vidas vamos ter está sempre dependente de quem vive connosco o início da realidade da vida e da cumplicidade que vamos criando.
Eu sou uma boneca feliz, sou daquelas que teve a felicidade de encontrar um lar, de ter um carinho de quando em vez neste nariz rosado que brilha quando o coração se enche de felicidade. Lembro-me de ter a minha boneca no quarto de brinquedos, continuo sem me lembrar do nome dela, mas sei que, quando ia ao quarto dos brinquedos, a primeira coisa que fazia era fazer-lhe uma festa naquele nariz arrebitado e dizer-lhe “gosto de ti!”. Quando olho em volta, vejo as prateleiras cheias, pego na boneca e sento-me no tapete fofo, cor-de-vinho, era um pouco escuro, mas ao mesmo tempo era acolhedor, sentava-me naquele quarto e podia dispor das minhas coisas, ficando simplesmente a ler, ouvir música, ou simplesmente a comentar o meu dia, as minhas angústias, as minhas alegrias. Olho para as minhas mãos de criança que cresce a cada dia, e vejo-me a ler “Uma Aventura no Porto”, leio página atrás de página, e na página seguinte estou a ler “O Principezinho” de Antoine de Saint-Exupéry, e releio vezes sem conta a frase “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram-se dessa verdade, mas tu não a deves esquecer. Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativa", demoro-me nela porque ela diz tudo o que eu quero ser. Quando a entendo e passo de página, estou a ler “Os Maias” de Eça de Queiroz, e deixo-me permanecer naqueles caminhos românticos de Sintra e no charme do Hotel Central, e página atrás de página chego a um sem número de livros que me enchem a alma de histórias e vivências que só os livros nos dão.
O sol começa a pôr-se, e os raios alaranjados entram pela janela onde vejo a menina, que já é uma jovem, a estudar, está com auscultadores, daqueles pequenos que entram nos ouvidos, e eu estou no seu quarto, que continua branco, simples e elegante.
Capítulo 7
O dia clareou cedo, a luz quente que me bate na cara aquece o meu corpo cansado sentado neste alpendre de madeira, da nossa casa da aldeia, onde posso relaxar nesta cadeira de baloiço. Perguntam-me se eu preciso de alguma coisa, peço um copo de chá fresco, e deixo-me a mirar as crianças a brincar em volta do jardim, não é o parque em que outrora eu brincava, mas é um jardim bonito, com a relva verdejante bem tratada, tem árvores de vários frutos, e no final tem uma pequena piscina para os mais jovens se refrescarem deste calor forte de agosto. Beberico aos poucos o chá fresco, na verdade não é chá, é uma infusão, mas não discuto, já só tenho tempo e forças para o que vale a pena, e neste momento não vejo melhor forma de as utilizar do que estar a observar as crianças a brincar.
Os rapazes brincam com a bola, gritam e riem-se divertidos uns com os outros, estão todos sujos pela candura do relvado que lhes deixa as marcas daquilo que nos é mais natural, a terra, castanho-escura, húmida e vívida. As meninas ora se divertem a ver os brincam os meninos, ora brincam com melopeias a jogarem ao elástico, ora jogam “à macaca”, ou simplesmente, sentam-se junto das floreiras e procuram um trevo de quatro folhas. A inocência das crianças é tão refrescante, mais do que esta infusão gelada que beberico devagarinho, com cuidado para não me resfriar. Os seus risos são a alforria de almas adormecidas, são gritos adornados de felicidade que se espalham pelo ar em pedaços, planando como momentos felizes que fazem a completude da felicidade, e, hoje, percebo que a fonte da minha realização começa em pequenos momentos felizes, olhando para estas crianças.
O fim de tarde sempre deu uma certa moleza, quando o sol se começa a pôr e o céu fica com uma linha no horizonte que corta o círculo do sol, os olhos começam a pesar-me e deixo-me levar pela preguiça, dormitando uns minutos, com o som da agitação das crianças como música de fundo, embalando-me num sono descansado.
Já dentro de casa, ouço o barulho das loiças, devem ser horas de jantar, olho em volta e deparo-me com a mesma casa, apenas mais moderna, bem cuidada, com móveis de madeira que só nas aldeias é que ficam bem, vejo muita gente a ajudar a pôr a mesa, é uma família grande pelo número de lugares. Passeio com os olhos os recantos da casa, as luzes já não são tão amarelas, são mais brancas, a mesa é mais comprida, e o banco corrido deu lugar a cadeiras de madeira-escura, adornadas com uma almofada de cor-de-vinho, ou será púrpura, no centro da sala está um quadro enorme com a fotografia da família, embora não os reconheça sinto que são meus, e isso traz-me uma pequena ansiedade por me sentir um pouco perdida no meio daquela agitação.
Enquanto vou passeando por cada recanto, vejo-a a entrar na sala, a minha menina, que já não é uma criança, nem uma jovem a estudar, é já uma mulher que entra na sala e vejo que traz com ela uma barriga linda, e quando passa por mim, para, endireita-me e acaricia-me o nariz rosado e arrebitado, ao mesmo tempo que passa a mão pela enorme barriga redonda, e sorri, aquele sorriso inocente com que acordei para esta vida, dizendo “Olá, Maria Clara”, e eu penso “Olá, Leonor”.
Epílogo
As vozes fortes e acaloradas enchem o silêncio que se fazia sentir, um silêncio em que se fazia dar pelo estalar da lareira, mas aos poucos as vozes de uns somam-se às vozes de outros, entre risos e conversas excitadas percebe-se que é dia de festa, fora da caixa ouvem-se as crianças a correrem e a brincarem, os adultos a conversarem até que, paulatinamente, as cadeiras são arrastadas e depreendo que se vão sentar à mesa. A animação continua, uns falam e dominam a conversa, outros riem-se e de repente já estão de volta as crianças a correr perto de mim.
Passado algum tempo, sinto todos mais próximos, as crianças param de correr e riem naquele momento de felicidade, até que sinto a minha caixa a mexer-se, ouço a voz de uma mulher a falar e a chamar por uma menina, não percebi o nome, apenas comecei a sentir o cheiro da vida, ouvi papel a ser rasgado, com muito tato e cuidado, a cada instante senti-me mais ansiosa com a boca seca, e por fim a caixa é totalmente aberta, percebi que havia muitas luzes e muitas pessoas ao redor de mim, todos a olhar com curiosidade, e quando abri totalmente os olhos, vi uma menina de olhos azuis-celestes, a lacrimejar, a pegar em mim com muito cuidado, como se eu me pudesse partir, abraçou-me de forma materna e disse-me “és linda!”, “és a minha Boneca de Nariz Rosado!”.