segunda-feira, maio 06, 2024

A Menina de Nariz Rosado

Nota de Autor:

Este pequeno conto foi escrito a pedido da minha filha há 3 anos. Na altura, quando me sugeriu o Título, eu não sabia como poderia escrever para que ela pudesse ler e reler retendo mensagens escondidas, por isso, este foi um dos mais difíceis textos que escrevi, mas também dos textos que mais prazer me deu.

Espero que os meus poucos, mas bons, leitores apreciem e vivam-no como eu.

 


A Menina de Nariz Rosado

 

Texto: Rui Fontes Santos

 

Ilustração: Maria Leonor Santos

 

Data: 2024-04-19



Prólogo

 

Os recomeços são sempre uma incógnita para mim, não obstante haver sempre uma continuidade de linhagem, há sempre alterações significativas sobre o modo como vai ser a minha vida de tempos a tempos. Hoje, por exemplo, é diferente do que foi outrora, hoje vivo experiências novas, sentimentos novos, angústias novas, ou seja, vivo em função da realidade deste presente.

É interessante viver estas novas aventuras e para complementar com as que vivi anteriormente, recorro às minhas lembranças, vivo-as como se fossem hoje para não as esquecer, tento absorver o máximo que posso desta nova fase, e gosto sempre de ser como quem me antecedeu, ser uma boa ouvinte da minha nova amiga, sou a sua confidente. 

Nunca me queixei desta minha realidade, sou inclusive uma felizarda, porque podia estar esquecida num canto sem luz, sem ninguém com quem me preocupar ou que se preocupasse comigo, mas não, estou presente na vida de outra pessoa, que me abraça, que chora comigo, que partilha as suas alegrias e que se ri das suas vicissitudes. Gosto desta minha nova vida, mais do que esperava, é um começo ou recomeço, sinto-me feliz por fazer outra pessoa mais completa, sou aquilo que ela precisa e estou lá quando ela precisa, assim como noutros tempos também foram comigo.

Não posso dizer que a minha vida é sempre um marasmo e que sou apenas aquilo que os outros querem, por vezes tenho de ser ouvinte, outras vezes tenho de confortar, depende dos dias, das fases da vida, mas o meu papel não é passivo, o amor que transmitimos nunca é inócuo.

Neste momento, vou para onde me levam, estou sempre bem aconchegada e sou sempre bem tratada, estou sempre com roupa lavada e a condizer.

O meu nome é Maria Clara, sou a boneca de uma jovem, e é desta forma que vivo mais uma vida.


 

Capítulo 1

 

         Quando encerrei os olhos, não imaginava que fosse ficar tão ansiosa com esta nova fase, percebo que estou de novo a sentir na alma o calor da vida, percebo pelas vozes longínquas que serei acolhida, mas não sei como é que vou ser tratada – em boa verdade parecem-me pessoas educadas e de bom trato – mas, mesmo assim, as épocas passam, as gerações mudam, e o incerto causa-me uma angústia que não sentia desde criança, mas que felizmente se dissipa rapidamente, para minha tranquilidade.

Estou dentro da caixa, uma caixa larga e com cheiro perfumado, imaculada e ainda consigo sentir o leve cheiro do plástico, como se fosse se fosse nova. Está escuro dentro da caixa, mas ouve-se uma agitação alegre, vozes que gargalhavam, outras que brincavam, imagino que será uma época festiva, não me recordo quando é que tinha ido para a caixa, nem quanto tempo tinha ficado lá, pelo que ansiava sair e ver o que me esperava.

Senti a caixa a mexer, ouvi o papel que me cobria a ser rasgado, com cuidado, cheguei a sentir uma ternura sem perceber o porquê, quando a caixa foi aberta havia muitas luzes e muitas pessoas ao redor de mim, todos a olhar com curiosidade, e quando abri os olhos, vi uma menina de olhos azuis-celestes, a lacrimejar, a pegar em mim com muito cuidado, como se eu me pudesse partir, abraçou-me de forma materna e disse-me “és linda!”, “és a minha Maria Clara!”.

         Era Natal, e foi a partir desse dia que eu fui dela e ela foi minha, a nossa relação tornou-se umbilical, deixei de perceber quando a vida é o presente ou o passado, naquele dia, perdi-me na realidade, e as roupas com que a menina me cobriu para eu não ter frio eram minhas mas vinham do seu armário, o seu colo era terno e quente, como eu sentia quando pegava naquela que outrora foi minha, até no deitar, aquele  beijo de boas noites senti-o na bochecha e nos lábios. Naquele momento, eu senti-me dela e ela minha.

 

Capítulo 2

 

         Chove. A água precipita-se pelos céus azuis e embate cálida e terna nas janelas, deixando-se escorrer uma fraterna gota nos vidros limpos que servem de entrada para a luz que alumia o quarto, primeiro timidamente, por entre os orifícios das duas primeiras linhas da persiana, e aos poucos, quando o dia se impõe, a claridade acinzentada descobre os recantos do quarto. Junto à janela encontra-se a cama, generosamente larga para uma menina, coberta com lençóis finos, brancos e frescos. A luz sobe até à cabeceira onde encontra uma cara de uma jovem menina, de tez clara, cabelos claros, lisos e longos. Ainda não são horas, ainda apetece dormir, ou pelo menos enganar a luz com os olhos fechados, a fintar o acordar, mas já não há sono, apenas preguiça de quem ainda tem o tempo à sua espera.

         Depois de alguns minutos a fintar a luz do dia, a jovem puxa os lençóis para trás e levanta-se, ensonada e chama a mãe. Falam, não percebo bem o que dizem, mas a menina quer ir para o banho. Sempre gostou de tomar banho de manhã, refresca o corpo e a alma. Hoje, dia de Natal, pediu para tomar um banho com sais, gosta de fazer desenhos com a espuma espessa que exala um cheiro fresco a jasmim. Fica a tomar banho até os dedos ficarem enrugados, depois sai e veste-se, sempre muito bem arranjada, a vaidade começa cedo, e nesta idade percebo que toma as referências dos pais. Quando sai do quarto de banho, vai dar um beijo na face do pai, que a espera para tomarem o pequeno-almoço juntos. O pai, que também se levantou com um sorriso forçado, desfez a barba, e deleitou-se com um duche rápido. Antes de sair do quarto, concorre com a mulher e perfuma-se com um perfume forte e amadeirado que deixa um lastro por onde passa. 

         A mesa do pequeno-almoço é ponderada pela mãe, que procura um lugar para colocar o carrinho onde eu estou, após pedido da jovem que manifesta uma posse acolhedora neste dia de inverno. O pequeno-almoço é divertido, todos falam muito, procuram consensos sobre o que fazer durante o dia, e depois de tudo bem discutido, termina com um cheiro que me traz memórias de um passado, o cheiro de um café moído na hora enche a sala, e os pais deliciam-se com um expresso, bem tirado, com máquina de grão, e com o creme a demorar-se no topo do líquido castanho-escuro.

 

Capítulo 3

 

         O mês de dezembro sempre provocou em mim um sentimento de recato doméstico, gostei sempre de ficar mais por casa do que sair, pelo que, depois das aulas, o meu destino era sempre recolher a casa, sentir o cheiro do calor da lareira que fumava a lenha seca que o meu pai cortara no verão, tronco atrás de tronco e depois empilhava na cave, em lugar seco. Lembro-me dos meus pais chegarem cedo a casa, chegavam sempre depois de mim, vinham dos seus trabalhos, e a minha mãe ou meu pai, ainda com as roupas de trabalho, gostavam de ir junto da lareira, e acendê-la, parecia que era terapêutico para eles, depois de o fogo pegar e a lenha começar a estalar, eles ficavam sentados a olhar aquela luz laranja-forte a emanar uma luminescência que dava um conforto singular ao nosso lar.

         Quando senti aquele cheiro a café forte e bem tirado, com todos à mesa a apreciar aquele momento de família, lembrei-me que, ao pequeno-almoço de Natal, bebíamos um café de saco bem quente com umas carcaças torradas com queijo amanteigado ou compota de vários sabores. Ainda que nunca me tenha faltado nada, eram aqueles momentos a que eu dava mais valor nas férias de Natal, estar em família e aproveitar para ouvir as conversas dos adultos enquanto eu tomava conta da minha boneca, não me recordo do nome dela, era minha, tinha uma tez mais ou menos como eu, e tinha uma nariz rosado, tal como eu tenho agora, julgo que será genético, e eu gostava de passar o meu dedo pelo seu nariz arrebitado, afagando-o com o meu afeto de quem é responsável por alguém.

         Depois do pequeno-almoço, eu ia brincar com os meus brinquedos, em especial com a minha boneca, levava-a ao colo, bem coberta até ao quarto e começava a tratar dela. Na verdade, nunca imaginei que a frescura dos toalhetes antes de me colocar a fralda fossem tão frescos, hoje, ao sentir a menina a acariciar o meu nariz e dizer-me o quão linda eu sou, enquanto me limpa antes de colocar a fralda, sinto o quanto é reconfortante e agora percebo porque as bonecas também fecham os olhos para dormir um sono de bebé depois da fralda e do biberão de leite invisível, sinto as minhas mãos húmidas a limpar a minha boneca ao mesmo tempo que sinto a frescura dos toalhetes no corpo e deixo os meus olhos fecharem para um sono de boneca.

 

Capítulo 4

 

         Depois do pequeno-almoço, recolhi ao meu quarto, enquanto esperava que os meus pais me chamassem para irmos ao parque. O meu quarto era muito bonito, era todo em madeira clara, com móveis cheios de recortes manuais, onde muitas vezes passava os meus dedos, que se perdiam nas cornucópias com que a madeira brincava comigo, era relaxante estar deitada na cama simplesmente a observar a janela e ver o mundo como uma película de um filme. Naquele Natal, tinha companhia, brincava com a minha boneca, continuo sem me recordar do nome da boneca, mas era um nome pomposo e imponente, daqueles que se dão a uma princesa, que foi o que eu senti quando a recebi. O céu estava soalheiro, por isso, ainda que o frio fosse predominante, podíamos ir brincar para o parque e eu estava radiante, ia poder andar de baloiço e de escorrega e sentir o cheiro da terra húmida do frio sempre que raspo os pés no chão. Depois podia ir brincar para o jardim, que era muito bonito e muito bem tratado, na Primavera ficava coberto de flores coloridas que desabrochavam e preenchiam o parque com uma alegria que só as crianças sentiam, mas, nesta altura do ano, apenas as plantas verdes que se dão com o frio permanecem, ainda assim eram muito bonitas, de média altura deixando os seus ramos a cobrir a falta das flores.

          Há uma voz que se faz entoar no quarto, uma voz doce, tranquila e harmoniosa que se vai aproximando do quarto, e quando olho em volta e procuro os meus pais, o quarto já não é o mesmo, é branco com pormenores púrpura, é um quarto de menina mas sem os rococós que o meu quarto tem, é moderno mas elegante, simples mas completo, e é nesse momento que verifico que não sei se vou ao parque, porque não é a mim que me chamam, é à menina de olhos azuis-celestes, da cor de um mar cristalino, que me acaricia o nariz arrebitado que tenho, e me cobre de roupas improvisadas para eu não ter frio, e é nesse momento que eu percebo que vou viver aquele dia de Natal pelos olhos e alma da menina.

         O parque é diferente, tem um lago onde os patos nadam, há as progenitoras que lideram o caminho que os patinhos seguem em linha como se fossem uma extensão da sua mãe, rabiando sempre que curvam fazendo parecer uma cauda gigante. A menina leva-me ao colo, falando de quando em quando mostrando-me o parque que parece não ter fim. Além do lago enorme, existem árvores de troncos grossos e robustos, mostrando a imponência da sua antiguidade, com ramos altos e frondejantes, ainda que despidos desta altura do ano, não perdem a sua beleza. A menina é que define os caminhos por onde vão andando, os pais sorriem com a inocência dela a deliciar-se com os caminhos livres do parque, com caminhos em terra seca, ladeados por enormes relvados muito bem tratados, cortados uniformemente, ainda com poucas pessoas na rua, até porque, em dia de Natal, as famílias juntam-se para almoçar.

         A menina continuava a deambular livre pelo parque, correndo quando via os pássaros a voarem em forma de V, ou quando via os pavões a exibirem toda a sua exuberância de cores exóticas. Os pais riam e pareciam felizes que a filha se realizasse com os pequenos prazeres da vida. Durante todo o caminho, a menina ia me dizendo

“Olha, Maria Clara! Que giro são pássaros coloridos, mas não podemos chegar muito perto.” – dizia de forma entusiasmada e protetora.

outras vezes dizia-me sussurrando os seus lugares favoritos, como árvore que era tão antiga que as suas raízes saíam da terra permitindo subir um pouco em altura.

“Aqui temos que ter muito cuidado, pois podemos cair, mas conseguimos subir só um pouco e dar um salto!” – aqui dizia em voz baixa como se os pais não percebessem.

A felicidade surge-nos de formas diferentes, no tempo e no espaço, mas a felicidade como um todo é a soma de momentos felizes, não existe estado de felicidade plena, cada um de nós é mais feliz quantas mais vivências felizes conseguir colecionar ao longo da vida. E, neste momento, em que estou a pendular neste baloiço azul e vermelho, a ranger sempre que chego ao topo, senti-me livre e capaz de voar. Não consigo deixar de rir sempre que sinto o frio da barriga quando o banco volta para trás, apetecendo-me ficar aqui a rir sem fim. Os meus pais sorriem e pedem que tenha cuidado enquanto eu abrando para ir andar de escorrega. Tem as mesmas cores do baloiço, não é muito alto nem muito rápido, mas é sempre irresistível andar nele e sentir o ar fresco na cara. Em seguida, fico a rodopiar, com os braços abertos e a saia a abrir com a força do ar, fecho os olhos e quando os abro, estou nos braços quentes e cuidadosos da menina que me senta ao lado dela na mesa de Natal.

 

Capítulo 5

 

         À medida que os dias vão passando, a nossa relação começa a ficar cada vez mais umbilical, durante o dia brincamos, a menina fala comigo, confidencia-me as suas angústias, ainda que nesta idade sejam pequenos dilemas próprios da imaturidade de uma criança que está a entrar na perceção da realidade da vida, à noite os pais da menina contam uma história, muitas vezes improvisada, e no fim acariciam-nos para adormecermos, sem distinção.

         O tempo vai passando e cada vez sinto-me mais parte desta família, sou um elemento que me consideram em todos os momentos.

         A menina vai para escola e eu fico em casa, no carrinho, confortável até que ela chegue e me conte tudo o que se passou durante o dia. Há uma cumplicidade muito forte entre nós, por vezes nem é preciso contar os detalhes, parece que lemos os pensamentos uma da outra, estiradas na cama a olhar o candeeiro ornamentado com pequenos traços de cor púrpura. A menina está de olhos fechados a respirar fundo, imagino um dia intenso, imagino-me a atar os meus atacadores e a correr de seguida para o recreio, para brincar ao elástico, à macaca, ou a outra brincadeira qualquer, enquanto não soa o segundo toque que nos lembra que temos de estar sentadas naquelas secretárias monolugares, ligeiramente inclinadas e no topo um rasgo arredondado para colocarmos os nossos lápis, borracha e caneta bic cristal. A professora fala para a turma e chama-me para um exercício ao quadro, de louça negro e áspero. Com o apagador, de madeira com uma esponja dura para limpar o giz, clareio o local onde tenho de escrever, agarro um pedaço de giz branco, e escrevo no quadro o resultado do problema de matemática, o giz desliza a custo e faz aquele barulho que provoca um ligeiro arrepio. Depois explico à turma o meu raciocínio e a professora confirma que está correto, agradeço e volto ao meu lugar, dando o lugar a outro colega.

         No final das aulas, ficamos a brincar um pouco no recreio, sempre às mesmas brincadeiras de meninas, e no fim de uns quinze minutos são horas de regressar a casa. Pego nas minhas coisas, vou para casa, muitas vezes temos companhia até meio do caminho, depois sigo sozinha até casa, entro e cumprimento a minha mãe, vou lavar as mãos e lancho um copo de leite com um pão com marmelada, queijo ou simplesmente manteiga. De barriga composta, faço os trabalhos de casa, com atenção para que não venha nenhum recado para casa, e no fim, posso brincar, pego na minha boneca, deito-me na minha cama com ela e conto-lhe o meu dia, ou simplesmente ficamos estiradas na cama a olhar o candeeiro, de madeira entrelaçada com pequenos ursinhos a espreitarem, até que os nossos olhos fechem.

 

Capítulo 6

 

         A vida de uma boneca pode ser muito ingrata, somos muito importantes num determinado momento, no momento da novidade, e depois somos colocadas de parte, ou, por outro lado, podemos ter uma vida cheia quando ficamos presentes na vida de uma amiga, vivendo com ela todos os momentos da sua vida através da sua presença, sem ficarmos encaixotadas num sótão escuro e silencioso. A decisão de qual das vidas vamos ter está sempre dependente de quem vive connosco o início da realidade da vida e da cumplicidade que vamos criando.

         Eu sou uma boneca feliz, sou daquelas que teve a felicidade de encontrar um lar, de ter um carinho de quando em vez neste nariz rosado que brilha quando o coração se enche de felicidade. Lembro-me de ter a minha boneca no quarto de brinquedos, continuo sem me lembrar do nome dela, mas sei que, quando ia ao quarto dos brinquedos, a primeira coisa que fazia era fazer-lhe uma festa naquele nariz arrebitado e dizer-lhe “gosto de ti!”. Quando olho em volta, vejo as prateleiras cheias, pego na boneca e sento-me no tapete fofo, cor-de-vinho, era um pouco escuro, mas ao mesmo tempo era acolhedor, sentava-me naquele quarto e podia dispor das minhas coisas, ficando simplesmente a ler, ouvir música, ou simplesmente a comentar o meu dia, as minhas angústias, as minhas alegrias. Olho para as minhas mãos de criança que cresce a cada dia, e vejo-me a ler “Uma Aventura no Porto”, leio página atrás de página, e na página seguinte estou a ler “O Principezinho” de Antoine de Saint-Exupéry, e releio vezes sem conta a frase “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram-se dessa verdade, mas tu não a deves esquecer. Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativa", demoro-me nela porque ela diz tudo o que eu quero ser. Quando a entendo e passo de página, estou a ler “Os Maias” de Eça de Queiroz, e deixo-me permanecer naqueles caminhos românticos de Sintra e no charme do Hotel Central, e página atrás de página chego a um sem número de livros que me enchem a alma de histórias e vivências que só os livros nos dão.

         O sol começa a pôr-se, e os raios alaranjados entram pela janela onde vejo a menina, que já é uma jovem, a estudar, está com auscultadores, daqueles pequenos que entram nos ouvidos, e eu estou no seu quarto, que continua branco, simples e elegante.

 

Capítulo 7

 

         O dia clareou cedo, a luz quente que me bate na cara aquece o meu corpo cansado sentado neste alpendre de madeira, da nossa casa da aldeia, onde posso relaxar nesta cadeira de baloiço. Perguntam-me se eu preciso de alguma coisa, peço um copo de chá fresco, e deixo-me a mirar as crianças a brincar em volta do jardim, não é o parque em que outrora eu brincava, mas é um jardim bonito, com a relva verdejante bem tratada, tem árvores de vários frutos, e no final tem uma pequena piscina para os mais jovens se refrescarem deste calor forte de agosto. Beberico aos poucos o chá fresco, na verdade não é chá, é uma infusão, mas não discuto, já só tenho tempo e forças para o que vale a pena, e neste momento não vejo melhor forma de as utilizar do que estar a observar as crianças a brincar.

         Os rapazes brincam com a bola, gritam e riem-se divertidos uns com os outros, estão todos sujos pela candura do relvado que lhes deixa as marcas daquilo que nos é mais natural, a terra, castanho-escura, húmida e vívida. As meninas ora se divertem a ver os brincam os meninos, ora brincam com melopeias a jogarem ao elástico, ora jogam “à macaca”, ou simplesmente, sentam-se junto das floreiras e procuram um trevo de quatro folhas. A inocência das crianças é tão refrescante, mais do que esta infusão gelada que beberico devagarinho, com cuidado para não me resfriar. Os seus risos são a alforria de almas adormecidas, são gritos adornados de felicidade que se espalham pelo ar em pedaços, planando como momentos felizes que fazem a completude da felicidade, e, hoje, percebo que a fonte da minha realização começa em pequenos momentos felizes, olhando para estas crianças.

         O fim de tarde sempre deu uma certa moleza, quando o sol se começa a pôr e o céu fica com uma linha no horizonte que corta o círculo do sol, os olhos começam a pesar-me e deixo-me levar pela preguiça, dormitando uns minutos, com o som da agitação das crianças como música de fundo, embalando-me num sono descansado.

         Já dentro de casa, ouço o barulho das loiças, devem ser horas de jantar, olho em volta e deparo-me com a mesma casa, apenas mais moderna, bem cuidada, com móveis de madeira que só nas aldeias é que ficam bem, vejo muita gente a ajudar a pôr a mesa, é uma família grande pelo número de lugares. Passeio com os olhos os recantos da casa, as luzes já não são tão amarelas, são mais brancas, a mesa é mais comprida, e o banco corrido deu lugar a cadeiras de madeira-escura, adornadas com uma almofada de cor-de-vinho, ou será púrpura, no centro da sala está um quadro enorme com a fotografia da família, embora não os reconheça sinto que são meus, e isso traz-me uma pequena ansiedade por me sentir um pouco perdida no meio daquela agitação.

         Enquanto vou passeando por cada recanto, vejo-a a entrar na sala, a minha menina, que já não é uma criança, nem uma jovem a estudar, é já uma mulher que entra na sala e vejo que traz com ela uma barriga linda, e quando passa por mim, para, endireita-me e acaricia-me o nariz rosado e arrebitado, ao mesmo tempo que passa a mão pela enorme barriga redonda, e sorri, aquele sorriso inocente com que acordei para esta vida, dizendo “Olá, Maria Clara”, e eu penso “Olá, Leonor”.

 

Epílogo

 

         As vozes fortes e acaloradas enchem o silêncio que se fazia sentir, um silêncio em que se fazia dar pelo estalar da lareira, mas aos poucos as vozes de uns somam-se às vozes de outros, entre risos e conversas excitadas percebe-se que é dia de festa, fora da caixa ouvem-se as crianças a correrem e a brincarem, os adultos a conversarem até que, paulatinamente, as cadeiras são arrastadas e depreendo que se vão sentar à mesa. A animação continua, uns falam e dominam a conversa, outros riem-se e de repente já estão de volta as crianças a correr perto de mim.

Passado algum tempo, sinto todos mais próximos, as crianças param de correr e riem naquele momento de felicidade, até que sinto a minha caixa a mexer-se, ouço a voz de uma mulher a falar e a chamar por uma menina, não percebi o nome, apenas comecei a sentir o cheiro da vida, ouvi papel a ser rasgado, com muito tato e cuidado, a cada instante senti-me mais ansiosa com a boca seca, e por fim a caixa é totalmente aberta, percebi que havia muitas luzes e muitas pessoas ao redor de mim, todos a olhar com curiosidade, e quando abri totalmente os olhos, vi uma menina de olhos azuis-celestes, a lacrimejar, a pegar em mim com muito cuidado, como se eu me pudesse partir, abraçou-me de forma materna e disse-me “és linda!”, “és a minha Boneca de Nariz Rosado!”.

 

sábado, julho 25, 2020

"A boa madeira não cresce com sossego; quanto mais forte o vento, mais fortes as árvores." - J. Willard Marriott


Sempre gostei de passear no silêncio perdido dos bosques, das matas e das florestas, ou simplesmente, calcorrear os caminhos de terra escura, fria e húmida que esperaram séculos para serem descobertos e nos contarem as suas histórias com sinais que temos que descobrir a cada passada.
O ar que se respira nestes espaços pincelados pela verdura da natureza exalam uma frescura que nos entra na alma e purifica o ar rarefeito que vivemos no dia a dia. Gosto particularmente de me deitar no meio das árvores e olhar para cima, ver aqueles troncos enormes e grossos a afunilarem-se até ao infinito, deixando uma aureola na ponta, apenas para que a claridade entre e alumie com a cor da vida a própria vida.
Quando passeamos por estes caminhos sinuosos e sem norte, percebemos que as árvores seculares que ornamentam este paraíso resistiram a várias intempéries, eventualmente de todos os tipos dos elementos da natureza – ar,  fogo, água e terra – e só as mais fortes, aquelas que que procuram nas adversidades uma oportunidade para serem mais fortes, é que conseguiram prevalecer e privilegiar os seus convidados com o que de melhor têm para oferecer, a sua natureza no seu estado mais puro.
Continuo a percorrer este bosque com caminhos de musgo verde-escuro, com a frescura a acariciar-me a cara, primeiro como uma tentativa de me ler a cara, o corpo, a minha presença, depois o ar intensifica-se, as folhas começam a movimentar-se e o que antes era um silêncio perdido, agora é uma sinfonia de sons que se ligam entre si, como se cada elemento daquele lugar tocasse um instrumento diferente. As rajadas de vento começam a intensificar-se e começam percorrer desordenadas as aberturas dos troncos fortes e grossos das árvores, assobiando, num tom que não identifico, mas que mostra intensidade e força. Os meus pés começam a sentir a terra a mover-se, as árvores firmam as raízes nas profundezas daquela terra castanho-escuro, permanecendo imóveis e firmes nos seus postos. O meu corpo balança ao sabor daquele desassossego, tento ver uma saída, mas tudo o que consigo é segurar-me a uma árvore, e como ela deixo que as minhas raízes cresçam para o interior do chão, deixando-me frondescer naquele espaço mágico. As minhas pernas tornam-se um belo tronco de árvore, que juntas se seguram daquela ventania, os meus braços crescem e multiplicam-se cobertos de pequenas ramificações que se enchem de folhas verdes com cheiro fresco.
Quando tudo passou, já não sei se sou árvore ou se sou pessoa, talvez seja um pouco das duas, e assim, procurarei em cada uma delas ser mais forte, mais puro e mais feliz, como aquele corpo que entrou aqui e que o vejo sair do bosque hirto e com um olhar firme no futuro.

quinta-feira, julho 16, 2020

Uma História sem Nome

Nota de Autor:

A minha filha adora ler histórias, não só as que só têm imagens, mas histórias que lhe despertam a curiosidade do que vêm na próxima página e pediu-me que lhe escrevesse uma história para ela, e no fim ela desenharia a capa. A capa é uma ilustração do conto que ela desenhou, depois de ouvir a primeira leitura.

Não é uma história infantil, escrevi uma história para ela ir descobrindo mensagens novas a cada leitura, ao longo dos anos.

Texto: Rui Fontes Santos
Ilustração: Maria Leonor Santos


Prólogo

O dia estava soalheiro, convidava a um longo e calmo passeio no enorme e antigo jardim da cidade. Como habitualmente, deambulei naquelas ruelas de terra fina, circulei por todo o parque, escolhendo cuidadosamente onde é que, hoje, me iria sentar. O jardim envolve-nos numa espécie de jardins do éden, envoltos num arvoredo frondoso que nos rodeia e nos abraça, despoletando uma sensação de frescura sempre que nos protege dos raios quentes do Sol. A verdura dos vastos jardins verdejantes, bem cortados e molhados, bem como a terra ainda húmida da rega regular, refresca-nos a alma e deixa-nos limpos para aspirarmos a candura daqueles campos.
Gosto de me sentar todos os dias em locais diferentes, sempre em função daquele banco que me oferece ter um momento de vivacidade e ao mesmo tempo, a tranquilidade necessária para poder estar a ler, ou simplesmente apreciar a paisagem que me abraça. Por mais que conheça o jardim, e os seus caminhos sinuosos que se serpenteiam sem nunca se encontrarem, a procura do local propicia-me uma boa caminhada, fazendo-me sentir com o vigor de outros tempos. Gosto particularmente de ver a juventude com os pais, a brincar, a jogar à bola, ou simplesmente a correr, talvez porque tenho alguma propensão a não gostar de me sentir sozinho. É por isso que escolho sempre um local onde possa estar sentado a ler e ouvir no fundo o som da vida. Não recordo se já me tinha sentado naquele banco, estavam a pintá-los a todos, a tinta cheirava a fresco, optaram por um vermelho escuro, mas bastante brilhante, o banco encontrava-se imaculado. Antes de começar a ler, percebi que havia uma parte que não tinha sido restaurada, estava pintada, mas conseguia-se perceber que anteriormente a madeira tinha sido marcada com as inscrições de umas letras, cuidadosamente poupadas pelo pintor. Passei os dedos por elas e senti claramente que se tratava de duas letras e um sinal: “A + M”.
Passei várias vezes os meus dedos pelas inscrições, com a leveza e calma necessárias para perceber qual o tipo de letra marcada, tentando adivinhar a idade de quem tinha inscrito aquelas iniciais: seria um casal de adolescentes que com as hormonas ao rubro fizeram juras de amor naquele banco e hoje nem se lembram de tal ato? seria um casal que, na clandestinidade, marcaram o seu amor num dos marcos da cidade, na impossibilidade de o revelar à sociedade? seria apenas e só uma brincadeiras de namorados? À medida que passeava os meus dedos grossos por aquelas letras, mais conjeturas fazia na minha cabeça, muito provavelmente resultado da veia romântica que sempre norteou a minha vida. Depois de várias análises ao inscrito naquele pedaço de madeira, consegui concluir duas coisas: a primeira é que não foi premeditado, os rasgos da madeira tinham sido repetidos com uma espécie de chave pois cada um era ladeado num paralelismo perfeito; a segunda conclusão é que eram adultos, pois os traços era firmes e profundos, como quem o fez com a força de quem ama verdadeiramente.
Todas as conclusões eram baseadas em premissas tendenciosas, não havia forma de perceber exatamente o que se passou naquele banco, nem quando, mas eu quis dar-me a história de um amor impossível que fora inscrito naquele banco, para se perpetuar nas gerações da cidade, inspirando outros a amar incondicionalmente.
Olhei para o livro que trazia comigo, ainda não tinha começado a lê-lo, havia sempre qualquer coisa que me impedia de iniciar a folheá-lo. Pousei-o ao meu lado, não conseguia dedicar-me a uma história que não fosse a daquela das inscrições, e como não a sabia, comecei a escrever mentalmente a história daquelas inscrições como desejava que tivesse acontecido, dei por mim a procurar um papel e uma caneta para escrevinhar, mas com a cabeça a debitar ideias, deixei-me levar pela ordenação de pensamentos para que pudesse começar a viver a história de amor que estava marcada nos jardins vetustos que me rodeavam.

I

Estávamos no final da década dos anos trinta, viviam-se tempos conturbados com o início da segunda Grande Guerra Mundial, aliada a um tempo de ditadura política. A guerra tinha acabado de começar e as expectativas que Portugal pudesse voltar a juntar-se aos Aliados pairavam no ar de todas as famílias. O clima pesaroso que se vivia não estava propenso a grandes festividades, e todos aqueles que podiam levar uma vida de classe média eram considerados uns felizardos, sendo muitas vezes marginalizados pelos seus concidadãos, e vice-versa. Havia um clima de crispação silenciosa de parte a parte, não obstante o medo colocasse na maioria das pessoas a necessidade superior de relações urbanas com o respeito devido.
O jovem Afonso, de dezanove anos, estava a dar os primeiros passos na empresa do pai, tratava-se de uma empresa tipográfica, pelo que tudo o que era ali impresso tinha de passar impreterivelmente pelo crivo da censura prévia imposta pelo Estado Novo. A responsabilidade de haver uma falha era demasiado grande, pelo que o seu pai nomeou-o responsável por acompanhar o encarregado para todo o lado, de modo a que conhecesse toda a empresa, bem como os meandros que teria de frequentar para poder estar salvaguardado. A tarefa não era fácil, havia uma azáfama diária que começava bem cedo, e muitas vezes terminava só de madrugada, mas Afonso era um jovem abnegado e cheio de vontade de mostrar que era muito mais do que o filho do dono da tipografia. Pouco a pouco, começou a dominar as tarefas e os circuitos sociais e políticos em que teria de marcar presença, cada vez mais intensos à medida que o tempo passava.
Com o decorrer dos dias que iam passando, Afonso foi-se inteirando da responsabilidade da sua função como um todo, lia os artigos que lhe chegavam e enviava para a análise da Lei da Imprensa, onde cada vez mais vinham com mais cortes e com mais anotações que não as do autor. Não obstante o desconforto tornar-se cada vez maior, ele e o seu pai sabiam muito bem as regras do jogo, pelo que não havia muito a fazer, até porque eles simplesmente imprimiam os textos daqueles que permaneciam fiéis aos seus princípios e não deixavam de escrever a verdade.
Era um tempo difícil para todos, obviamente que para uns mais do que outros, mas havia algo que unia quem desejava a paz que fugia há muitos anos, independentemente da classe social, todos desejavam poder cheirar o ar puro da Primavera que se havia tornado rarefeito e impossível de propiciar os cheiros floreais que desabrochavam nos jardins, ou nas árvores que iam perdendo os seus tons outonais e começavam a colorir a cidade de uma miscelânea de cores do arco-íris. A Primavera tinha chegado, mais uma vez, mais um ano, mas com ela não veio o renascer da esperança para aquela população que vivia angustiada com o futuro incerto que assolava a cada nascer do Sol, e quando se pensa que cada dia é uma nova oportunidade, naquele tempo, cada dia era apenas mais um dia de constrição que teria de ser superado.
No fim de cada dia de trabalho, Afonso procurava desanuviar daquela pressão sufocante que tinha que cumprir, e que de discordava visceralmente, por isso era comum procurar espaços com pouca gente para poder estar a pensar como seria uma vida em que não tivesse que deambular preso em liberdade pelas ruas da cidade. O seu local de eleição era o jardim da cidade. Um local imponente, criado para mostrar a força do regime. Nele emergiam frondosas árvores, que agora começavam a oferecer um cenário colorido ao jardim. A ladear os caminhos de terra que serpenteavam aquele espaço, numa espécie de labirinto, havia arbustos verde-escuros de meio metro, que exalavam um cheiro forte e fresco a floresta, permitindo aos transeuntes que enchessem os pulmões de um ar fresco, expulsando o ar tóxico que absorviam durante o dia.
Depois de vaguear durante alguns bons minutos, Afonso sabia que os caminhos de terra pelada iriam dar ao seu local favorito, era um simples banco como todos os outros naquele parque, mas nele conseguia ter uma visão caleidoscópica da vida daquele jardim, e para culminar, estava posicionado para assistir ao pôr-do-sol, que timidamente deslizava por entre o arvoredo frondejante e se perdia na linha imaginária do fim do oceano.
Naquele fim de tarde, Afonso estava furioso, todas as edições que lhe haviam chegado para imprimir nas suas máquinas grandes e robustas, tinham vindo escandalosamente ceifadas pela censura, produzir edições com meia dúzia de páginas seria incomportável para os jornais e para a própria tipografia, que teria que ligar a maquinaria sem a permitir aquecer. No preciso momento em que se sentou, percebeu que o banco estava ocupado e rapidamente se colocou de pé, escusando-se em desculpas por tal comportamento:
  • Senhorita, as minhas mais sinceras desculpas. Estava completamente distraído e não percebi que o banco já estaria ocupado. Aceite as minhas desculpas e procurarei outro banco. – sentenciou Afonso com a caro ao rubro.
  • Desculpas aceites, mas, por favor, acalme-se que não cometeu nenhum crime, pelo menos digno de tal embaraço. – respondeu a jovem rapariga.
  • Gosto de respeitar a privacidade dos outros, e com tantos bancos disponíveis, não quis parecer grosseiro ao ponto de me sentar especificamente neste banco. – justificou Afonso.
  • É verdade, há muitos bancos disponíveis, mas serão mesmo iguais a este? Já viu a paisagem que nos oferece este banco, e daqui a uns minutos poder-se-á observar…
  • Um pôr-do-sol único. – completou Afonso a frase.
  • Ah, por isso se sentou neste banco, e por pouco em cima do meu colo! – gracejou a rapariga com o embaraço de Afonso.
  • Acredite que vinha a pensar em mil e uma coisas e nem dei pela sua presença. Peço-lhe novamente desculpas por tal invasão.
  • Não sei se fico mais ofendida por se ter sentado no banco de forma abrupta, ou se fico ofendida por ter repetido que a minha presença lhe foi invisível. – terminou a frase enfrentado Afonso que se mantinha de pé.
  • Não, de todo, seria impossível não dar conta de uma senhorita com tamanha classe e beleza. – defendeu-se Afonso.

A jovem tinha de facto uma beleza estonteante, os seus cabelos fartos e negros, contrastavam com os seus olhos grandes, penetrante com tons de verde misturado com traços de cor-de-mel. A sua cara era esguia e os lábios eram ligeiramente carnudos, levemente pintados de um rosa claro da cor dos seus lábios. Notava-se que era uma rapariga de uma classe social alta, estava extremamente bem vestida e tudo nela era perfeito. 
Desde o início da conversa que Afonso não desgrudou os olhos da rapariga, mas qualquer avanço seria com certeza mal interpretado, pelo que preferiu deixar para um próximo encontro. Mas a jovem além de bela era destemida e independente, e depois de uma bela gargalhada fitou Afonso e convidou-o a sentar-se no banco, havia espaço para cerca de quatro pessoas, pelo que não seria embaraço para nenhum dos dois estar no mesmo banco.
  • Mas senhorita, o que poderão pensar as pessoas? – refutou Afonso.
  • Cavalheiro, deve preocupar-se unicamente com o que eu poderia pensar, e como não vejo nada de mal, convido-o a sentar-se a assistir o pôr-do-sol comigo, na verdade nunca assisti acompanhada, por isso, se fizer o obséquio e não for demasiada maçada, sente-se e assistamos a esta maravilha da natureza.
  • Muito bem, será um enorme prazer. Se me permite. – sentou-se Afonso encabulado com tamanha firmeza da jovem.

O pôr-do-sol não tardou e mais minuto, menos minuto que o habitual as enormes árvores do jardim deixaram trespassar o brilho alaranjado do Sol que se escondeu atrás do oceano. Os dois jovens ficaram a olhar para o horizonte, pensativos, durante todo aquele cenário nenhum deles proferiu uma palavra, respeitando a privacidade do outro, até porque nenhum deles tinha alguma vez assistido acompanhado. Foi Afonso quem tomou a palavra depois de largos minutos a absorver aquele espetáculo.
  • É de facto revigorante assistir a esta maravilha da natureza. – suspirou Afonso.
  • Sem dúvida um verdadeiro privilégio que a natureza nos oferece sem pedir nada em troca…
  • Agradeço-lhe o privilégio do convite, e se permite, para que não saiba com quem assistiu, o meu nome é Afonso. Muito prazer, senhorita.
  • Mariana. Chamo-me Mariana.


II

Os dias para Afonso tornaram-se cada vez mais longos, os minutos e as horas tinham perdido a dimensão de tempo, e o que antes era um dia agora parecia-lhe uma eternidade. Por um lado, tinha perdido todo o interesse por aquilo que fazia, considerava que não estava a contribuir para a instrução da população, antes pelo contrário, a contrainformação era tanta que seria preferível que uma das máquinas avariasse e impedisse circular aquela informação preparada em função do regime ditatorial que ganhava poder a cada dia que passava. Por outro lado, desejava sair para ver o pôr-do-sol, que é como quem diz, queria voltar encontrar a jovem Mariana. Desde aquele dia, nunca mais a encontrou, por vezes ficava até mais tarde no jardim, mas as suas tentativas mostravam-se infrutíferas, não havia qualquer sombra da jovem senhorita que o tinha deixado tão inquieto. Na verdade, para Afonso, havia passado uma eternidade, mas na realidade tinha passado apenas uma semana, o que já era o suficiente para o deixar angustiado.
No final de cada dia de trabalho, Afonso deslocava-se ao jardim levando sempre consigo um livro, passeava pelos caminhos serpenteados do jardim romântico da cidade e procurava em cada banco um vislumbre de Mariana. As semanas iam passando e não havia sinal de Mariana. Afonso não podia dar-se ao luxo de passear no jardim o dia todo, e especulava se aquele horário não havia sido um feliz acaso, onde pôde conhecer Mariana. Nesse dia, sentou-se no banco do jardim e esperou pelo pôr-do-sol, sentiu-se revigorado, mas incompleto, nunca mais aquele pôr-do-sol teria o mesmo sabor quando comparado com aquele feliz dia em que conheceu a mulher dos seus sonhos. Antes de se levantar, Afonso olhou para o lugar que seria de Mariana e num impulso, pegou nas suas chaves e cravou no banco a letra “A”, na esperança que Mariana pudesse sentar-se naquele banco enquanto trabalhava e visse a sua inicial, e a entendesse como uma mensagem encriptada.
Passara precisamente um mês, estava um dia soalheiro, e apenas se conseguia estar no jardim porque as árvores frondosas e a rega levantavam uma frescura para os seus visitantes. Afonso, nesse dia, foi direto ao banco na esperança de a encontrar, ou ver algum sinal dela. O banco estava vazio, assim como ficou a sua esperança de a voltar a ver. Sentou-se, pousou o livro ao seu lado, e olhou em frente. As crianças brincavam, corriam pelos caminhos labirínticos de terra pelada, riam-se numa espécie de ignorância inocente de quem não sabia o que se vivia naquela época. Afonso sorriu, gostava de os ver livres e descomprometidos a correr, saltar e jogar à bola, fazia-lhe bem à sua alma que estava perdida e ao seu coração que estava despedaçado.
  • Boa tarde, Cavalheiro. Dá-me licença de utilizar o seu banco?

Naquele momento, Afonso que havia fechado os olhos por instantes, ficou atónito com o surgimento inesperado de Mariana. Depressa se tentou recompor, levantando-se de imediato fazendo-lhe uma saudação cavalheiresca com o chapéu.
  • Boa tarde, senhorita Mariana. Com certeza que sim, é o mínimo que poderia fazer para retribuir a sua gentileza do outro dia.
  • Lembra-se do meu nome? Que giro, passado tanto tempo pensava que já não se lembraria de mim. Pergunto-lhe porque  a situação hoje é outra, estamos em posições completamente diferentes.
  • Então, porque diz isso? – perguntou Afonso curioso.
  • No outro dia, eu estava num banco sem dono, hoje o banco tem dono, ora veja aqui esta marca. Parece-me um “A” de Afonso bem marcado e preciso, ou não foi o senhor?
  • Bom, para tudo há uma explicação. Na verdade, não sei o que me deu para tal infantilidade. Foi recentemente…
  • Eu sei, eu vi a marca há poucos dias.
  • Pois, foi recentemente. Olhe, na verdade, não sei porque o fiz, ou talvez o saiba. O que aconteceu é que estava sozinho, o pôr-do-sol tinha terminado e senti-me só, e num gesto irrefletido e infantil marquei a minha inicial, mas não com qualquer intenção de tomar o banco como meu.
  • Bom, sendo assim, vou-me sentar. – sentando-se à medida que ia falando – Já agora, como é que o fez? Não me diga que anda de ferramentas consigo, ou pior, com alguma faca!
  • Não, de maneira alguma. O único objeto que tinha comigo eram as minhas chaves, e foi com elas que fiz isso. Sinto-me envergonhado e um pateta.
  • Posso ver as suas chaves? – perguntou Mariana.
  • Claro. Aqui estão.
Toda aquela conversa era completamente atípica para Afonso, o ar cândido de Mariana não condizia com o seu espírito, havia algo nela que o libertava daquela prisão diária. Começou por observar as chaves, uma por uma, e depois olhou friamente para a chave utilizada.
  • Foi esta? – perguntou Mariana para ter a certeza.
  • Sim, foi.
  • Então, se me permite. – e Mariana cravou uns dez centímetros abaixo a letra “M”, com o mesmo vigor da anterior.
  • O que faz, senhorita? – perguntou estupefacto Afonso.
  • O mesmo que fez, assim o banco é pertença do Estado com usufruto exclusivo de nós os dois. Só mais um pormenor, falta aqui qualquer coisa. – cravando um “+” no meio das duas letras – Perfeito!
  • Bom, se nos pedirem a identificação seremos os dois levados para a esquadra como dois miúdos apaixonados que na sua rebeldia quiseram deixar a marca do seu amor.
  • Relaxe, não somos miúdos. – e deu uma gargalhada no exato tom do que uma senhora é ensinada.
  • A senhorita…
  • Mariana, trate-me por Mariana. Este formalismo depois de termos marcado o banco não faz qualquer sentido, não concorda.
  • Sim, de facto, depois disto, acho que nos podemos tratar pelo nome próprio. – com a garganta seca recomeçou – Como eu estava a dizer, a Mariana é destemida, apenas lhe importa o que sente, não procura desculpas nos outros. Isso é de louvar. Mas não teme que possam fazer outras interpretações destas inscrições cravadas no banco?
  • O Afonso tem outra interpretação para estas simples inscrições?
  • Já que estamos a falar abertamente… eu marquei o banco na esperança que a Mariana passasse por aqui durante o dia e pudesse ver a minha inicial. Não foi um impulso, foi premeditado. Perdoe-me se a estou a ofender, mas depois daquele dia não consigo pensar neste momento do final de tarde sem a ter na minha companhia. Bem sei que depois do que estou a dizer é inconveniente, pelo que peço que aceite as minhas desculpas.
  • Bom, de facto não esperava que fosse tão direto. Tinha-o como um cavalheiro muito conservador…
  • Mais uma vez, peço desculpa, mas percebi hoje que se não fosse honesto com a Mariana, seria um cretino.
  • Deixe-me terminar, por favor, Afonso. Eu não sou destemida nem nada que se pareça. Naquele dia, senti uma grande empatia por si, pois percebi que era um cavalheiro distinto, cheio de receio de ser indelicado, por isso achei-lhe muita graça, até porque é tão cuidadoso nas palavras, que me deixou segura. Depois, para terminar, percebi que tínhamos o mesmo escape, ver o pôr-do-sol no final do dia neste banco. Mas não me respondeu à minha pergunta, tem outra interpretação para o meu ato “destemido”?
  • Não sei se é uma interpretação ou um desejo.
  • E qual é?
  • Gostaria de a conhecer melhor, gostaria que as nossas iniciais cravadas na madeira nova deste banco do jardim pudessem significar mais do que duas letras num banco de jardim. Dá-me a honra de a conhecer melhor?
  • “A + M”, assim seja. – rematou Mariana.

O Sol começou a baixar, por entre os ramos grossos e fortes das árvores seculares, os seus raios iluminavam os sorrisos que se abriam nas faces de Afonso e Mariana, até ficarem a olhar no horizonte o cair do pano do primeiro ato da peça das suas vidas.

III

Nos dias seguintes, Afonso vivia com outra alegria, embora levasse a cabo algumas tarefas que iam contra tudo o que  acreditava, o desejo de passar os finais de tarde com Mariana tirava-lhe toda a amargura que pudesse ter naqueles riscos de “Lápis Azul” a rasurar os documentos que lhe chegavam. Ele sabia que havia uma certa dose de egoísmo da sua parte, mas era mais forte do que ele, a felicidade que se apoderou dele fê-lo abstrair-se daquele mundo de repressão.
Os encontros no jardim imponente da cidade começaram a ser quase diários, Mariana surgia sempre elegante e Afonso, como cavalheiro de boas maneiras, já estava à sua espera. Durante os encontros, as conversas surgiam naturalmente, sempre sobre assuntos de interesses comuns, como livros, cidades que gostariam de conhecer, terminando invariavelmente sobre o magnânimo jardim que os rodeava e os deixava respirar sem que houvesse amanhã. Naquelas conversas, não havia espaço para qualquer tema desagradável, ambos sabiam os tempos que viviam, mas optaram por reservar aquele pequeno espaço de tempo como uma redoma de felicidade.
  • Os meus pais gostavam de o conhecer. – atirou Mariana a seco.
  • A mim? Os seus pais sabem que nos temos encontrado? – disse aflito Afonso.
  • Sim, aliás, há dias em que a nossa governanta se esconde atrás daquele arvoredo para depois lhes ir contar tudo – disse rindo-se da cena patética da sua governanta.
  • E só agora me diz?
  • Não achei relevante. Como não estamos a fazer nada de mal, simplesmente ignorei e nem comentei em casa que a tinha visto.
  • Mas os seus pais aprovam estes nossos encontros?
  • Isso não sei, nunca lhes perguntei, nem tenciono fazê-lo. A vida é minha, e sou eu quem tenho que aprovar. Agora tenho de lhes dar a oportunidade de conhecer o homem que me anda a cortejar.
  • Depois diz que não é destemida – disse Afonso sorrindo de orgulho ao ouvir a palavra “cortejar”.
  • Então, posso agendar um jantar lá em casa? Quando tem disponibilidade?
  • Quando vos for mais oportuno, eu ajustarei a minha disponibilidade.
  • Muito bem, amanhã. Quanto mais cedo melhor.
  • Quer-me dar alguma pista para fazer boa figura?
  • Seja tal como é comigo, ninguém deve mudar para agradar o outro.

Depois daquele convite inesperado, Afonso celebrou estar tudo a correr bem, e apreciou aquele fim de tarde com um avanço inesperado pousando delicadamente a sua mão por cima da mão de Mariana. Ambos tiraram os olhos do horizonte e fitaram-se com um sorriso aberto de felicidade.
No dia do jantar, Afonso apressou-se para chegar a casa e colocar-se o mais apresentável possível. Não fazia a mínima ideia de como era a família de Mariana, apenas percebeu que tinham uma governanta, e que os pais eram atentos aos movimentos da filha. Colocou o seu melhor fato, e escolheu uma gravata a preceito. Os sapatos tinham sido previamente engraxados e brilhavam como novos. Quando se olhou ao espelho, pensou o quanto mudara desde que Mariana entrara na sua vida, ainda que tivesse sido há tão pouco tempo, pois a sua personalidade era tão forte e vincada que nunca havia mudado um comportamento para agradar outra pessoa, mas por Mariana era capaz de fazer tudo para a agradar.
De chapéu colocado, saiu em direção a casa de Mariana, mas antes passou pela florista onde havia reservado um ramo de flores para oferecer à mãe de Mariana, na ausência de saber quais as suas flores preferidas, pediu um ramo elegante para uma senhora distinta que fosse condicente com o seu extrato social. Chegou um minuto antes das vinte horas, sempre lhe haviam ensinado que se deve chegar pontualmente a qualquer encontro, no limite, antes vale um minuto adiantado do que um minuto atrasado. A casa era enorme, tinha quatro frentes, com umas paredes imaculadamente pintadas de branco. A toda a volta, havia um relvado cortado recentemente, circunscrito por uns arbustos de metro e meio para criar privacidade. As portadas da casa eram todas em madeira escura, bem envernizada e brilhantes. Os vidros das portadas estavam tão transparentes que parecia que não existiam. Naquele momento, Afonso percebeu o motivo de os pais de Mariana se poderem ter dado ao luxo de enviar a governanta espiar os seus encontros, devia haver mais empregados para poderem ter a casa tão bem estimada.
Depois de respirar fundo, Afonso tocou na campainha, medindo o tempo preciso do toque, nem foi um toque de fugida, nem um toque estridente, foi o quanto baste para dar sinal da sua chegada. A porta de entrada abriu-se e veio ao seu encontro a famigerada governanta.
  • Boa noite, senhor Afonso. Seja bem-vindo. Por favor, acompanhe-me, os senhores já estão a descer. Pode aguardar aqui no hall. Posso guardar o seu chapéu?
  • Sim, por favor. Obrigado. – tartameleou Afonso.

No cimo das escadas, estava Mariana acompanhada dos seus pais, desceram as escadas alcatifadas de um vermelho escuro, com uma barra dourada a prender a alcatifa em cada ponta. Dos três apenas o pai vinha com cara séria, Mariana descia descontraída com um sorriso iluminado e a mãe apresentava os traços a quem a filha havia herdado a beleza e simpatia. Como esperava, seria o pai a fazer as honras da casa.
  • Boa noite, caro Afonso. Seja bem-vindo à nossa casa. É um prazer conhecê-lo, finalmente. Já ouvimos falar imenso de si. – iniciou o pai de Mariana a conversa para quebrar o gelo.
  • Boa noite, senhor Cerqueira Gomes. O prazer é todo meu.
  • Apresento-lhe a senhora Cerqueira Gomes.
  • Muito prazer, Sra. Dª Cerqueira Gomes. Tomei a liberdade de lhe trazer umas flores.
  • Que bonito arranjo! Muito gentil da sua parte e de bom gosto – disse sorrindo. O prazer é todo nosso.
  • Boa noite, Mariana. – atirou Afonso sem pensar duas vezes.
  • Boa noite, Afonso. – sorriu em cumplicidade Mariana.
  • Bom, as saudações estão feitas, vamos entrar para a sala de estar, enquanto não servem o jantar. – dirigindo-se o pai de Mariana ao carrinho das bebidas. – Aceita algum aperitivo antes do jantar, Afonso?
  • Estou bem, obrigado.
  • Vá, sinta-se em casa. Posso servir o mesmo que para mim?
  • Bom, já que insiste, sim, agradeço.
O dia estava quente, Afonso ainda estava tenso, e temia desfazer-se em suor. O pai de Mariana foi preparar dois Porto Tónicos, cuidadosamente medidos nas doses, e serviu com gelo e limão, enquanto todos se sentavam nos majestosos sofás que ornamentavam a sala cheia de estantes com livros, uma grafonola e discos e bastantes quadros.
  • Aqui tem, com este calor, sabe bem uma bebida fresca. Saúde!
  • Saúde!– retribuiu Afonso.
  • A Mariana disse-nos que trabalhava na tipografia da família. Como está a correr o negócio?
  • O meu pai precisava de ajuda e eu acabei por seguir o negócio. Na verdade, a nossa tipografia é bastante solicitada, primamos pela qualidade e daí que muitas das impressões do país tenham origem na nossa tipografia.
  • Isso é bom de ouvir, pois disse algo muito interessante, quando primamos pela qualidade, tudo corre melhor, o pior que pode acontecer a uma sucessão é o desleixo, mas parece-me que o seu pai não corre esse risco. – fitou Afonso à espera de uma resposta.
  • Não correrá, sou bastante consciente dos deveres e obrigações que a nossa empresa representa para o país, pois embora os textos não sejam nossos, eles devem ser impressos com o superior interesse de propiciar conhecimento e informação à população.
  • Eu diria que temos aqui uma certa dose idílica na sua missão do dia a dia, o que só faz bem, entenda-se.
  • Sim, de facto. Quando queremos fazer algo bem, temos que acreditar que vamos contribuir para algo melhor, caso contrário estaremos a fazer por fazer, sem qualquer objetivo, sem um propósito final.
  • Então o negócio vai de vento em pompa?
  • Já teve melhores dias, os livros são cada vez menos editados, os jornais têm cada vez menos páginas, por isso, não se pode dizer que estejamos nos nossos melhores tempos, mas fazemos o nosso trabalho com o mesmo brio, isso ninguém nos tira.
  • Humm… deduzo que esteja a falar dos documentos que são revistos pela censura.
  • Papá, já chega de interrogatório – interveio Mariana salvando Afonso, ou temendo a sua resposta.
  • Estamos apenas a conhecer-nos e achei muito interessante um jovem com um posicionamento na vida tão firme e responsável. Peço que me desculpe se fui inconveniente.
  • Não, de todo. – respondeu Afonso depois de um gole no seu Porto Tónico.

O jantar foi servido às vinte e trinta, em ponto. A pontualidade britânica primava naquela casa. O jantar foi um delicioso pato assado com laranja, a travessa parecia um arranjo de mesa, o pato estava tostado no ponto certo, envolvido com acompanhamentos coloridos que só no prato se conseguiam descortinar.
Durante a refeição, a conversa foi fluindo num tom menos fastidioso, perguntaram como é que Afonso e Mariana se tinham conhecido e Afonso contou a história, omitindo a parte em que marcaram o banco do jardim. Não havia nada a esconder, por isso a conversa foi fluída, complementada por Mariana que brincava dizendo que tudo se iniciou com o direito à posse do banco de jardim da cidade. A mãe da Mariana falava pouco, mas tinha um olhar que coordenava todos os empregados, como se falassem por sinais de fumo. À sobremesa, foi servido um crumble de maçã com gelado de baunilha, e estava delicioso.
  • O café será servido na sala de estar. – informou a mãe de Mariana.
  • Pois bem, caro Afonso, agora podemos retomar a nossa conversa sem importunar as senhoras da casa. Deixou-me curioso, acha que devia haver menos critério na informação que lhe chega para imprimir?
  • Como lhe disse a nossa empresa imprime os textos dos nossos clientes, e nós apenas nos cingimos a escolher quem queremos “tipografar”, não aceitamos qualquer pedido de impressão, pois temos um nome que já vem do meu avô a conservar. No entanto, parece-me que tem havido um crescente excesso de critério daquilo que se pode escrever, pois todos os textos passam por mim, e eu vejo que há textos que são meramente informativos do que se passa no país, daí que se fosse eu a escrever aquela peça, ficaria frustrado.
  • Sabe, Afonso, nós muitas vezes temos de cortar os males pela raiz, daí que esses textos tenham que ser acertados pelo superior interesse nacional e ordem pública.
  • É um ponto de vista que tenho de respeitar, mas, como compreenderá, o superior interesse nacional merece que não haja falta de informação.
  • Chegaram os cafés! – irrompeu Mariana com a governanta atrás de si. – rapidamente percebeu que tinha chegado ou em boa hora, ou tarde demais.
  • Ótimo, sentemo-nos então. – ordenou o pai.

Depois daquela conversa, Afonso queria passar o mais despercebido possível no resto do jantar, percebeu que ele e o pai de Mariana estavam em lados oposto sobre o que era melhor para o país, pelo que falar mais sobre o tema só serviria para azedar a relação. Depois do café, Afonso tentou agilmente tornar as conversas mais abertas para todos, de modo a fugir a mais um interrogatório. Falaram mais um pouco e, às dez e trinta, Afonso agradecendo o jantar percebeu que eram horas de se retirar. À saída, cumprimentou novamente todos e voltou a agradecer o convite.
  • Até à próxima, caro Afonso. – apertou a mão de Afonso com firmeza e com um olhar penetrante.
  • Até à próxima, senhor Cerqueira Gomes.

Quando saiu do portão, Afonso voltou o olhar para trás e viu Mariana a acenar-lhe da janela do seu quarto, sorrindo e enviando-lhe um beijo.

IV
Nos dias seguintes, Mariana não compareceu ao seu encontro, Afonso estranhou aquela ausência e relacionou-a de imediato com o jantar. A pequena afronta da sua opinião contrária à do seu pai foi o mote para que Mariana fosse proibida de estar com Afonso. O desencontro durava há uma semana, quando Afonso decidiu passar por casa de Mariana num final de tarde. Bateu no portão, e depois de alguns segundos – que para Afonso pareciam eternos minutos, quem veio ao seu encontro foi o pai de Mariana, dirigiu-se com ar pesado ao portão, sem o abrir.
  • Boa tarde. – disse secamente o pai de Mariana.
  • Boa tarde, senhor Cerqueira Gomes. Vim saber de Mariana. Desde o nosso jantar que não nos temos encontrado no jardim da cidade e fiquei preocupado.
  • Diga-me, Afonso, o que quer da minha filha? – disse o pai sem paciência.
  • O que quero? Com todo o respeito, senhor, mas se isso não ficou evidente no jantar, eu di-lo-ei com todas as letras: quero conhecê-la, respeitá-la e amá-la para o resto da minha vida. Sei que sou novo, mas nunca fui mulherengo e nunca tive um relacionamento, porque estava sempre a trabalhar, e o que tenho com Mariana ultrapassou os planos da minha vida.
  • Caro Afonso, você é jovem e encontrará outra pessoa por quem se vai apaixonar e vai ser feliz. O Afonso e Mariana não estão predestinados.
  • Discordo! – disse Afonso sem ponderar as palavras e o tom – Peço desculpa pelo tom, mas quem decidirá se nós estaremos predestinados seremos nós os dois, e o nosso relacionamento não está nas mãos de mais ninguém.
  • Pois, muito bem, jovem Afonso. Quer casar com a minha filha, quer casar com uma mulher que fica constantemente doente semanas a fio? É isso que quer para a sua vida? Ficou sem fala? Onde está o homem de há minutos? – disse o pai irritado.
  • Doente? Mas o que tem Mariana? Desde quando? Posso vê-la?
  • Não, não pode. A Mariana sofre de uma doença que ainda não foi diagnosticada, e por vezes tem que ficar semanas fechada no quarto porque não tem forças para se levantar. Responda, ainda quer casar com a minha filha?
  • Mais do que tudo! – atirou Afonso.

O duelo de titãs durou largos minutos, com a mãe a espreitar da janela com um lenço a limpar as lágrimas. O pai de Mariana explicava a Afonso que não deixaria a sua filha nas suas mãos, pois ele iria deixá-la por cansaço, seria um fardo que só os pais são capazes de suportar. Afonso ripostava, e exigia ver Mariana.
  • Afonso, nós estamos em lados opostos em muitos temas, mas, no que concerne, à Mariana queremos ambos o melhor para ela, e o melhor para ela é ficar connosco. – defendia o pai.
  • Dê-me uma oportunidade de mostrar que o amor vence mais vezes que a razão. – pediu Afonso ao pai, que exasperado abanava a cabeça.
  • Entre… vamos conversar melhor lá dentro.

Na sala onde haviam estado, o pai puxou de um whiskey e sentou-se frente a frente com Afonso. Antes havia chamado a mãe de Mariana para saber se a filha podia receber Afonso. Estavam ambos à espera, e enquanto esperavam, o pai informou Afonso que, se Mariana aceitasse o relacionamento, seria de acordo com as suas regras: ele teria acesso a Mariana e daria todo o suporte médico que ela precisasse, teriam que morar perto da sua casa, e não interferiria em nenhum momento na vida privada deles. Esta última condição surpreendeu Afonso, as regras eram simples e genuínas, pelo que aceitou.
  • Falta saber se Mariana vai querer esta vida para si – disse o patriarca.
Quando a mãe chegou à sala, haviam passado uns bons trinta minutos, os dois levantaram-se, e perguntou o pai ansioso:
  • Então, o que disse Mariana?

A mãe, surgiu com o seu sorriso simpático, e disse:
  • Vamos deixar que seja Mariana a dizer o que decidiu.

Com a ajuda da governanta, apareceu Mariana, debilitada, frágil, segredando ao ouvido da governanta algo, que mais tarde percebemos que seria para a ajudar a sentar-se. Quando já estavam todos sentados, Mariana olhou Afonso, os dois ficaram presos no olhar largos minutos sem proferirem uma palavra. Afonso sorriu, procurando nela uma resposta, mas não conseguiu mais do que terminar com aquele jogo de olhares.
  • Ninguém decide a minha vida, eu sou a única dona dela, por isso, tudo o que já falaram vale zero para mim. – disse Mariana com um vigor que vinha das entranhas. – Eu é que contaria ao Afonso quando achasse que era a altura ideal e se essa altura chegasse.
  • Mas filha, o Afonso apareceu, e eu tive que lhe contar. – defendeu-se o pai.
  • Mariana… – interpelou Afonso.
  • Espera, por favor, Afonso. Deixem-me terminar. Eu não contei nada porque não queria que o Afonso tivesse pena de mim, se ele me amasse verdadeiramente eu contaria e ele decidiria.
  • Afonso, o que temos é tão recente e eu serei um fardo para ti. As coisas poderiam ter sido diferentes, mas não foram, por isso, peço que deixemos a nossa história por aqui.
  • Não, recuso-me. É tarde demais para esquecer o que sinto por ti, por isso, peço que esqueças tudo o que te rodeia, e responde-me a uma simples pergunta: queres casar comigo?
  • Que tolice! – disse o pai. – Então a minha filha pede para deixar as coisas por aqui e você pede-a em casamento?
  • Basta, é a Mariana que tem que responder. – interpôs a mãe.

Os olhos de Mariana brilhavam, e, no canto do olho direito, houve uma lágrima que escapou ao seu controlo. A governanta ajudou a compor-se na cadeira. O jogo de olhares começou de novo, mas desta vez, foi curto, foi interrompido por um sorriso largo e iluminado de Mariana.
  • Afonso… – disse Mariana, suspirando.
  • É um sim? – apressou-se Afonso.
  • O que é que eu te posso oferecer? O que vês em mim?
  • Podes-me dar uma história sem fim. Casa comigo?
  • Então fá-lo, como deve ser. – brincou Mariana.
  • Caro senhor Cerqueira Gomes, peço-lhe a mão de Mariana em casamento.
  • Concedida…
  • Mariana, quem ama apenas sabe que ama, e vai descobrindo o porquê desse amor ao longo da vida, queres casar comigo? – perguntou Afonso ajoelhado em frente a Mariana.
  • “A + M” – respondeu Mariana com os olhos humedecidos.


V

Nos dias seguintes, Afonso visitou Mariana todos os dias, trazia com ele sempre algo que lhe permitisse passar o dia mais alegre, esperando por ele ao final da tarde.
Aos poucos, começou a levar Mariana ao jardim de sua casa e passeava com ela às voltas do casarão. Mariana estava cada vez mais fortalecida, o noivado havia-lhe dado uma energia suplementar e Afonso não a poupava a mimos.
O casamento deu-se numa cerimónia simples e muito familiar, foi um pedido expresso de Mariana, queria apenas aqueles que ela amava no dia em que aquela inscrição do jardim da cidade passaria a ter novo significado. Mesmo na simplicidade, Mariana estava linda e rejuvenescida, iluminando o salão de festas com a sua gargalhada no tom perfeito.
Afonso e Mariana foram morar para uma casa térrea com um jardim vasto ao redor da casa, para que nas suas crises, que cada vez foram menos frequentes, pudessem namorar num banco idêntico ao do jardim da cidade.
A vida sorriu-lhes, tiveram três filhos, duas meninas e um rapaz. Afonso conseguiu aguentar a tipografia e conciliar com a vida familiar. O seu pai reformou-se e os pais de Mariana eram presença assídua lá em casa, e tal como prometido, nunca houve qualquer interferência na vida privada do casal.
Quando fizeram vinte e cinco anos de casados, Afonso ofereceu a Mariana um livro que escreveu durante vários anos. Era uma história de amor.
  • Não tem título? – perguntou Mariana.
  • As histórias de amor não têm nome. – sorriu Afonso.


Epílogo

Olhei em frente e fiquei a observar o grande lago que ornamentava o centro do jardim da cidade. Fiquei a ver a ondulação provocada pelos patos que passeavam em fila, sempre gostei de ver as crias atrás da mãe, por onde quer que ela fosse, também os patinhos seguiam o seu rasto.
Ainda faltavam alguns minutos para o pôr-do-sol, agora iria vivê-lo como na história que imaginei para aquelas inscrições, como seria ver aquele pôr-de-sol agarrado àquela história que me saiu da alma? Será que irei sentir a presença daquele casal que se enamorou com a bênção do Sol que os banhava a cada dia de namoro? O Sol começou a descer, posicionei-me como Afonso se posicionaria, pousei o meu livro do meu lado direito, para deixar o lugar esquerdo livre para imaginar Mariana.
Ao longe, o Sol começava a raiar o parque por entre o arvoredo verde-escuro e frondoso, numa quietude irrompida pela entrada em cena de um casal de crianças que corriam desalmadamente pelo parque numa corrida desenfreada.
  • Parem, meninos! Já chegamos. – gritou a uns metros de mim uma senhora octogenária.
  • Onde é, Avó? – pararam as crianças à procura do lugar.
  • É aqui, neste banco. – disse a senhora.
  • Aqui? Onde está?
  • Vejam, está pintado de fresco, mas ainda se vê bem. São estas as marcações.
  • Avó, este “A + M” são as iniciais do Avô Afonso e tuas?
  • Sim, “A” de Afonso e “M” de Mariana.
  • E o “+”?
  • Significa uma ligação sem fim.
  • Vá, deixem-me sentar neste canto e vocês sentam-se onde o avô Afonso se sentava. Já só vamos ver a parte final. Olhem o horizonte.

Ao meu lado estavam sentadas as personagens da minha história, e com elas olhei o horizonte e vi o pôr-do-sol acompanhado. Quando o Sol se estava a esconder atrás do mar, a avó Mariana ficou a olhar o horizonte, com os olhos cor-de-mel humedecidos. Eu via tudo com clareza, mas eles não me viam.
  • Avó, está aqui um livro – disse o rapaz.
  • Um livro? – respondeu a avó arrepiada.
  • Sim, deve ser antigo porque já não se vê o título.
  • Deixa-me ver, por favor.

A Avó Mariana pegou no livro, era igual ao que lhe tinha sido oferecido por Afonso, mas as páginas estavam em branco, prontas para serem preenchidas por uma história de uma vida.
  • Pega nele e quando encontrares o teu verdadeiro amor, escreve a vossa história.
  • E que título lhe dou? – questionou o rapaz
  • Não lhe dês um título, as histórias de amor não têm nome.

No momento em que o rapaz pegou no livro, senti o Sol a chamar-me e eu deixei-me ir, leve como uma pena, vendo-os cada vez mais distantes, mas com um sentimento forte da certeza que o amor não tem espaço nem tempo…é presente e eterno.

A Menina de Nariz Rosado

Nota de Autor: Este pequeno conto foi escrito a pedido da minha filha há 3 anos. Na altura, quando me sugeriu o Título, eu não sabia como po...